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sábado, 10 de outubro de 2009

Wicca e Bruxaria - O ressurgimento




Por Marcos Torrigo

Atualmente, vivemos um retorno aos cultos pagãos. Em verdade, uma releitura destes. A wicca e a bruxaria são as facetas mais conhecidas desse movimento. Mas será que elas são mesmo conhecidas? Em que se inspiraram esses novos bruxos para fundamentarem suas crenças?

A bruxaria e a wicca têm um papel importante no resgate da figura da mulher, especialmente quando ligada ao religioso. Nas escultura do período Paleolítico, a mulher era um tema recorrente (Vênus de Willendorf, Laussel, etc.), representada seios fartos, quadris largos e a vagina bem delineada; era a materialização da Grande Mãe. Há indicações de que a mulher representava a imortalidade, os mistérios da geração da vida e o poder mágico.

Os símbolos femininos dessas épocas ancestrais se mantiveram presentes até a Antiguidade clássica e, de certa forma, até os dias de hoje.

Margaret Murray, uma eminente egiptóloga, lançou a tese de que a bruxaria era um culto marginal presente no Ocidente desde o período Paleolítico. Esse culto se manteve vivo e atuante, paralelo aos cultos oficiais, seja o paganismo greco-romano, seja o cristianismo. Tinha como divindade principal o deus de chifres, conhecido como Cernunnos, Pá ou Dianus, um deus da fertilidade muito similar ao Shiva de Mohenjo Dharo, senhor dos animais, ou o Cernunnos celta.

Essa tese de Murray ganhou uma legião de adeptos e, posteriormente, também de críticos. Hoje em dia, entre os acadêmicos, convencionou-se refutar a tese de Margaret Murray, tida como infundada. Apesar disso, na história da humanidade encontraremos inúmeros cultos que se assemelham à bruxaria.

Vale salientar que muitos elementos atribuído à bruxaria foram criações da Igreja Católica que, com o fim do feudalismo e as convulsões sociais decorrentes, via sua hegemonia ameaçada. Assim, o Santo Ofício (Inquisição) tinha como meta resguardar a fé, ou melhor, o domínio da Igreja.

Numa mudança radical, a sociedade, até então rural, se tornava urbana. O nome “pagão” vem do latim paganus, e se refere ao morador do campo, termo usado pelos romanos “cultos” convertidos ao cristianismo e que residiam nas cidades. Desse modo, pagão seria equivalente a “caipira”, e indicava alguém com crenças “atrasadas”, ou seja, ligado aos antigos deuses. Muitas das práticas pagãs eram vistas como crendices ou adoração ao demônio.

A era das fogueiras se delineia a partir do século 15, sob grande influência alemã, de onde mais tarde surgiria Lutero e o protestantismo. Em 1484, o Papa Inocêncio VIII (1432-1492) criou a bula Summis Desiderantes Affectibus, o documento que dá o aval para a matança que se seguiria, dando corpo ao Santo Ofício. Esse evento motivou o Malleus Maleficarum (1487), obra dos dominicanos alemães Heinrich Kraemer (c. 1430-1505) e Jacob Sprenger (c. 14361494), um manual de caça às bruxas, também conhecido como O Martelo das Bruxas.

Mas com o Renascimento artístico da época, também se desenvolve uma visão humanista e antropocêntrica, com o homem encarado como a “pérola” da criação e não mais um desgraçado pecador. Isso se contrapunha diretamente à Igreja e ao pensamento medieval. A vida era vivida em torno do ser humano, e não apenas da religião. Assim, as descobertas da Renascença abalavam os dogmas da Igreja e descortinavam uma nova era para a humanidade. A medieval retratava as desgraças do mundo e, conseqüentemente, as maravilhas do reino de Deus. A arte da Renascença mostra o homem feliz e a volta dos deuses romanos e gregos.

O leitor já deve ter se perguntado como se deu o renascimento da bruxaria nos moldes em que a conhecemos hoje. Vários elementos colaboraram em sua formação, especialmente alguns livros que se mostraram deveras importantes.

Um deles foi A Bruxaria Hoje (Witchcraft Today, 1954), de Gerald Gardner (1884-1964), um marco na história da bruxaria ou na criação da wicca (palavra de origem anglo-saxã). Esse livro trouxe a bruxaria a público e reavivou o interesse pelo tema, tarefa engendrada anos antes por Aradia: O Evangelho das Bruxas (Aradia: Gospel of the Witches, 1899), de Charles Godfrey Leland (1824-1903); pelo importantíssimo O Culto das Bruxas na Europa Ocidental (The Witch Cult in Western Europe, 1921), de Margaret Murray (1863-1963); e por A Deusa Branca (The White Goddess, 1948), de Robert Graves (1895-1985); sem esquecer, é claro, de O Ramo de Ouro (The Golden Bough, 1922), de Sir James Fraser (1854-1941). Todos esses livros semearam o caminho para que a wicca viesse a florescer.

Gardner tem um papel de destaque. Além de seus livros, criou covens e iniciou vários bruxos, dando corpo ao movimento. Ele passou a maior parte de sua vida trabalhando na Malásia, onde pôde entrar em contato com várias tradições exóticas. Esse gosto fez com que, após a sua aposentadoria e regresso à Inglaterra, ele ingressasse na Sociedade de Folclore e percorresse os meandros do ocultismo britânico, pesquisando as mais diversas fontes. Nessas pesquisas, ele conheceu Aleister Crowley (1875-1947) e Old Dorothy Clutterbuck (1880-1951), importantes figuras em sua trajetória.

Gardner foi membro da Fellowship of Crotona, em New Forest, onde conheceu Dorothy Clutterbuck, que o teria iniciado na bruxaria. Há quem diga que esse coven nunca existiu, mas há relatos mencionando que, na Segunda Guerra Mundial, em New Forest, um grupo de bruxas se reuniu para impedir o desembarque dos exércitos nazistas. A própria existência de Old Dorothy Clutterbuck era posta em dúvida, mas Doreen Valiente (1922-1999), discípula de Gardner, consegue provar sua existência.

O que salta aos olhos é o ecletismo de elementos utilizados por Gardner na confecção da wicca. Muitos rituais são criados a partir de elementos da magia cerimonial, especialmente a advinda da Aurora Dourada (Golden Dawn) e da maçonaria, entre outras fontes. Os fundadores da G.D., Samuel Liddel MacGregor Mathers (1854-1918), William Wynn Westcott (1848-1925) e William Robert Woodman (1828-1891), eram maçons e membros da SRIA (Sociedade Rosa-Cruz da Inglaterra), à qual também pertencia Hargrave Jennings (1817-1890). 


Havia boatos da ligação de Jennings com um coventículo, e Gardner até imaginava que ele poderia ser o “autor” de O Livro das Sombras. As ligações de Jennings com cultos fálicos são proverbiais.

Hargrave Jennings era o autor do livro Os Rosacrucianos (1870), no qual narra várias facetas do ocultismo da bruxaria. Por sua vez, Francis King afirma que as teorias de Murray haviam sido retiradas da obra de Hargrave Jennings e que, em 1915, Crowley havia escrito a Frater Achad, Charles Stansfeld Jones (1896-1950), a respeito da necessidade da criação de um culto pagão. A descrição do referido culto lembraria em muito a bruxaria gardeneriana, que surgiria algumas décadas depois. Tanto é assim que, para alguns estudiosos, o verdadeiro “pai” da bruxaria wicca foi Aleister Crowley e não Gardner, sendo Crowley o autor de O Livro das Sombras. Muitos anos antes, Crowley já se havia colocado como profeta da nova era e responsável pelo ressurgimento do paganismo, tendo pesquisado e desenvolvido várias vertentes da magia.

Gardner foi feito membro da O.T.O. (Ordo Templi Orientis), ordem mágicka reestruturada por Crowley. A relação entre Crowley e Gardner era amistosa, e o próprio Gardner acreditava que Crowley era uma das pessoas capazes de ter escrito O Livro das Sombras, talvez uma forma talvez de lhe dar a autoria sobre o livro ou de justificar o uso de grande quantidade de material de Crowley. Há inúmeras passagens de Crowley no livro de Gardner: “Eu sou a chama que arde em todo coração humano, e no núcleo de toda estrela. Eu sou Vida, e o doador da vida, entretanto, conhecer-me é conhecer a morte”. “Eu os amo! Eu anseio por vós! Pálido ou púrpura, velado ou voluptuoso, Eu que sou todo prazer e púrpura, e ébria no sentido mais profundo, os desejo”.

De todas as passagens, a mais clara é: “Faz o que tu queres, desde que não prejudiques a ninguém” (ou correlata); uma adaptação clara de: “Faz o que tu queres, há de ser o todo da Lei”, a máxima de Crowley. Ou ainda o uso do pentagrama: “Meu número é 11, como todos seus números que são nossos. A Estrela de Cinco Pontas, com um Círculo no meio”. O pentagrama wiccano é o inverso, ou seja, uma estrela circundada pelo círculo.

Convém falar um pouco a respeito do livro de Leland, Aradia: O Evangelho das Bruxas, escrito a partir do relato de uma jovem chamada Maddalena – uma bruxa de Florença, na Toscania. Ela se dizia descendente de uma tradição da bruxaria, a stregoneria. O quanto disso foi invenção da “fonte” ou criação do próprio Leland, não sabemos, mas o importante é que o livro trazia em “primeira mão” um culto de bruxaria. No livro, é narrada a história de Diana, que se une a seu irmão e filho, Lúcifer. Dessa união nasce Aradia, que vem à Terra para ensinar a arte da bruxaria. Tecnicamente, essa tradição remontaria aos etruscos.

Por mais que a narrativa de Leland seja difícil de se sustentar, é bom lembrar que relatos sobre o culto à deusa Diana são conhecidos ao longo da Idade Média. Esse culto era atribuído às bruxas, as fiéis da deusa. O historiador e antropólogo Carlo Ginzburg, em seus livros Storia Notturna, Una Decifrazione del Sabba e I Benandanti: Stregoneria e Culti Agrari tra Cinquecento e Seicento, coletou vários relatos sobre bruxaria, paganismo e cultos da fertilidade nas idades Média e Moderna.

Vale salientar que na pesquisa de Ginzburg um dos nomes da deusa era Diana, nomenclatura usada pela Igreja. Na verdade, a deusa era chamada de várias outras formas, e a roupagem cristã provavelmente era a camuflagem de um substrato pagão muito mais antigo. O papel da Igreja foi demonizar os cultos e enquadrá-los nas idéias oficiais, ou seja, como adoração ao diabo. À sua moda, a Igreja Católica contribuiu para a união entre Diana e as divindades germânicas da fertilidade uma vez que, durante a conversão desses povos, passava a nomear todas as divindades locais como Diana, um nome “clássico”, “encaixando” as crenças politeístas à sua teoria demonológica.

Os romanos também estabeleciam correlações entre suas divindades e as de outros povos. Populações celtas, teutônicas e eslavas faziam parte do Império Romano, e a deusa romana Diana ganhava atributos da Epona céltica. Assim, o Império Romano acabou por promover a miscigenação de cultos, produzindo o sincretismo entre algumas divindades.

Para completar o quadro, no fim do Império, com a invasão dos bárbaros, mais tradições e influências se acumularam. A Itália foi conquistada por godos, vândalos, lombardos e hunos. Séculos depois, veio o Sacro Império Romano Germânico. Essa miscigenação produziu lendas acerca da “cavalgada das bruxas”, chefiadas pela deusa Diana, um sincretismo entre as divindades mediterrâneas e as germânicas; os nórdicos, em seus Eddas, diziam que as bruxas iam para sua reunião montadas em lobos, javalis ou “paus de cerca”.

Um ponto curioso a respeito da bruxaria são os padrões similares encontrados na bruxaria de locais diferentes e sem qualquer contato uns com os outros. Uma das explicações reside na noção de inconsciente coletivo e na teoria dos arquétipos. Dessa forma, a grosso modo, a bruxaria não seria transmitida linearmente, de bruxa para bruxa, mas sim como um aspecto mais profundo da raça humana. Assim, ela poderia emergir nos locais mais distantes uns dos outros, como realmente aconteceu. Isso explicaria, em parte, a similitude entre alguns aspectos da bruxaria africana e da inglesa, por exemplo. Notei isso em minha pesquisa sobre vampiros e bruxaria, com o padrão dos relatos se repetindo da Malásia ao Caribe. Outros pesquisadores também se depararam com esse padrão, suscitando as mais diversas teorias.

A bruxaria é parte integrante da magia européia, e não só no passado remoto. Alguns membros de ordens, como a Golden Dawn, fizeram pesquisas de campo, nas quais afirmam ter encontrado essas tradições vivas. Temos o relato de J.W. Brodie-Innes (1848-1923) sobre as tradições celtas e de bruxaria, publicadas na revista Occult Review (vol. XXV); ou mesmo o brilhante artista plástico Austin Osman Spare (1886-1956), criador do Zos Kia Cultus, que foi iniciado pela senhora Paterson, uma norte-americana que alega ser descendente das bruxas de Salem.

Após seu renascimento efetivo, a bruxaria, nas mãos de Gardner, se multifacetou em várias tradições. A seu modo, cada uma delas tenta resgatar – na verdade recriar – os mistérios antigos. Algumas tradições mais sérias, outras nem tanto. Mas, sem dúvida, todas representam um movimento de vital importância no resgate do feminino, do papel da mulher na religião, da natureza e de uma visão mais holística do cosmos.

Bons ventos trazem essas novas (e antigas) tradições. Em muitos aspectos, o criador da wicca – tenha sido Gardner ou Crowley – estaria feliz com o resultado. Devemos muito a eles: a liberdade e o entendimento é fruto do trabalho dos dois.

Fonte: Revista Sexto Sentido número 56, páginas 20-24. http://www.revistasextosentido.net/


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Um comentário:

S. Thot disse...

"A bruxaria e a wicca têm um papel importante no resgate da figura da mulher, especialmente quando ligada ao religioso."

Eu não sinto isso, não. As mulheres, mesmo as wiccanas, permanecem um tanto alienadas de si e de outras mulheres. Eu achava que a religião as aproximaria, mas isso não se deu.