Por Gilberto Schroeder
O sacerdote franciscano Jacir de Freitas Faria, mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, realizou um estudo profundo das origens do cristianismo a partir do legado dos evangelhos apócrifos.
O livro das Origens Apócrifas do Cristianismo, do Frei Jacir de Freitas Faria, OFM (Ordem dos Frades Menores), é o volume 16 da série Teologias Bíblicas (Paulinas), que tem como objetivo aprofundar os estudos sobre as grandes correntes teológicas existentes no Primeiro e Segundo Testamentos. Ou, como explica Frei Jacir, “como o povo da Bíblia foi percebendo a revelação histórica de Deus na sua caminhada”.
Jacir diz que se “impôs” a nobre tarefa de estudar as origens do cristianismo que os evangelhos apócrifos nos legaram, porque é importante “olhar para trás”. O estudioso explica que “em nossos dias, cresce cada vez mais o desejo de redescobrir valores perdidos ou deixados de lado pela tradição cristã. Olhar par trás não significa cumprir a sina da mulher de Ló’, isto é, tornar-se uma estátua de sal. Olhar para trás significa deixar-se salgar pelo sal das primeiras comunidades, purificar-se de conceitos historicamente consagrados, sobretudo em relação à atuação das mulheres da primeira hora do cristianismo”.
Conversamos com Frei Jacir para saber mais respeito de seus estudos e outros temas relacionados aos evangelhos apócrifos.
O que são, exatamente, os textos apócrifos do cristianismo? Como considerar textos como o de O Livro de Enoch e O Livro de Noé, citados por alguns autores como sendo apócrifos? Eles estariam entre os apócrifos do que você chamou de Primeiro Testamento, ou Antigo Testamento?
Quando alguém usa o substantivo apócrifo, logo pensa em algo falso, recheado de mentiras. Na linguagem bíblica, apócrifo passou a significar texto não canônico (oficial) e, por conseguinte, não inspirado. Temos apócrifos do Primeiro e do Segundo Testamentos. Não considerando os inúmeros fragmentos de textos, podemos falar de 52 livros do Primeiro Testamento e 60 do Segundo. Esta classificação é também discutida.
A tradição protestante se encarregou de chamar os apócrifos também de pseudepígrafos, isto é, falsos escritos atribuídos à pessoa de notável autoridade na tradição, como Adão, Henoc, Moisés, etc. Os apócrifos, segundo a tradição protestante, são os livros excluídos da lista dos livros inspirados dos judeus, sendo que os cristãos os incluíram no cânon grego do Primeiro Testamento. A tradição católica, por sua vez, chamou estes livros de deuterocanônicos. São eles: Tobias, Judite, Sabedoria, 1 e 2 Macabeus, Eclesiástico e Baruc. Assim, os pseudepígrafos, oriundos do judaísmo e de uso restrito em determinados grupos, são os apócrifos para os católicos.
Creio que melhor seria não usar a terminologia pseudepígrafo, pois este substantivo tem uma conotação pejorativa. Na Bíblia canônica, também temos textos com teor de pseudepígrafo, isto é, o texto foi atribuído a um autor, mas não é de sua autoria. Cânticos dos Cânticos, O Livro de Enoch, assim como Livro dos Jubileus; Vida de Adão e Eva; I Henoque; II Henoque; Apocalipse de Abraão; Testamento de Abraão; Testamento de Jacó, etc, são considerados livros apócrifos do Segundo Testamento. Na lista dos livros apócrifos do Segundo Testamento, temos, por exemplo, evangelho de Maria Madalena, Tomé, Pedro etc, sejam eles de origem gnóstica ou não.
Em seu livro As Origens Apócrifas do Cristianismo, você diz que é preciso olhar para trás e estudar as origens do cristiuanismo, especialmente por meio dos evangelhos apócrifos. Essa é uma postura comum no cristianismo? É comum associarmos a palavra apócrifo a algo “proibido” ou “não verdadeiro”, especialmente quando citado por fontes católicas. Um exemplo clássico disso é o próprio Livro de Enoch, que também quase sempre é citado por pesquisadores que se referem à atuação de seres extraterrestre no passado longínquo da humanidade.
Quando eu defendo os apócrifos do Segundo Testamento, quero dizer que eles são importantes para resgate das origens do cristianismo. Sei que esta não é uma postura comum no meio cristão, seja ele católico ou não. Os apócrifos do Segundo Testamento, muitos deles preciosidades que não entraram no Cânon, podem e devem ser considerados também como voz alternativa de grupos heréticos, aqueles que pensavam diferente. Isto é a definição de “herético”.
É nom ser herético. Mesmo que neles não contenham verdades absolutas, mesmo que eles questionem, desinstalem a opinião sedimentada, vale a pena redescobri-los e lê-los de modo crítico e ecumênico. Jesus, Pedro, Madalena e os apóstolos, visto sob a ótica desses escritos, ganham uma nova feição, não menos importante que aquela que é objeto de nossa fé. Sabendo que a segunda é superior à primeira.
Com a minha pesquisa, quero convocar as pessoas a tomar consciência que nos apócrifos há exageros, mas não só isto. Deixemos de lado o que simplesmente é aberração nos apócrifos e tenhamos a coragem de dialogar com eles. A nossa tradição de fé que se perpetuou na oralidade, bem como em muitos dogmas, tem também fundamento nos livros apócrifos. A relação homem e mulher, tão debatida em nossos dias, encontra luzes no evangelho luzes no evangelho de Maria Madalena. Este o tema que discuto e aprofundo no meu próximo livro sobre os apócrifos, que está para ser lançado no próximo mês de março (2005). Ele leva o título de o Outro Pedro e a Outra Madalena Segundo os Apócrifos: Uma Leitura de Gênero, e está sendo publicado pela Editora Vozes.
Fala-se, também, que em alguns textos apócrifos – ou em um texto especifico, possivelmente entre os apócrifos encontrados em Nag Hammadi – é dito que Jesus Cristo pretendeu formar uma igreja – entendida como uma entidade, uma organização. Diz-se, ainda, que esse texto não é divulgação porque não é do interesse da Igreja Católica que esse conhecimento se torne público. Isso existe de fato? E sobre os rumores – ou boatos – de que existe um texto que pode ser atribuído ao próprio Cristo?
Os relatos sobre Jesus são uma ínfima parte daquilo que Jesus fez ou disse. A escolha dos fatos a serem escritos está relacionada com a experiência da comunidade que os escreve, após tê-lo guardado na memória.
Jesus nunca escreveu nada sobre ele. Nunca saberemos, de fato, toda a sua história, mas interpretações dela. Creio que distinguir a fala do Jesus histórico do da fé é tarefa não muito fácil. O que era dado de fé virou dado histórico e vice-versa. Estudos exegéticos e históricos mais recentes estimam que somente 18% das palavras atribuídas a Jesus nos evangelhos foram efetivamente pronunciadas por ele. Os evangelhos canônicos, pela sua beleza literária histórica e incontestável inspiração, continuam como obras fidedignas de nossa fé em Jesus, mas urge considerar os apócrifos.
A fundação da Igreja como instituição foi uma decorrência lógica da pregação, vida, morte e ressurreição de Jesus. Quem nele acreditou nos legou esta fé. Agora, dizer que Jesus, como nos tempos modernos, tinha como objetivo fundar uma Igreja é um exagero.
Sobre a definição de textos apócrifos, diz-se também que um texto apócrifo pode ser um texto falso ou falsificado no conteúdo ou titulo. O que isso significa, exatamente? Como definir se um texto é falso?
É difícil distinguir. Antigamente, acreditava-se que os textos sagrados eram ditados do alto. Hoje, não mais podemos acreditar nisto. Os apócrifos forma importantes, mas eles jamais poderão substituir a Bíblia. No entanto, com o avanço das ciências, não se permoite mais um estudo apenas piedoso dos textos sagrados. Não que todo estudo bíblico seja sempre piedoso, mar urge estudar, dialogar de forma responsável também com a literatura apócrifa, não somente com a canônica.
É verdade que os primeiro cristãos e seus sucessores, usando do bom senso, souberam selecionar os testemunhos escritos sobre a vida de Jesus e de seus seguidores. Um livro que não era usado por muitas comunidades tinha menos valor do que aquele que era amplamente conhecido. E também é claro que a seleção dos livros para entrar na Bíblia obedeceu a critérios de inspiração. Por outro lado, também não deixaram de entrar em jogo os interesses das lideranças cristãs e judaicas. Não exageramos quando afirmamos que os apóstolos, humanos como nós, disputaram o poder de mando na comunidade. E, nessa batalha, as mulheres foram deixadas de laldo. Embora muitas delas tenham feito valer a sua opinião, elas forma desprezadas. Até o século II da era Comum (E.C.), entre grupos de cristãos gnósticos, as mulheres exerciam mistérios de direção nas comunidades (mestras, sacerdotisas); depois disso, era considerado herege que se concedesse poder às mulheres.
Existem apócrifos que cobrem a fase da vida de Jesus da qual sempre diz que pouco ou nada se sabe? Em caso positivo, quais são esses textos e o que eles dizem de importante?
A infância de Jesus, que os evangelhos canônicos não mencionam, está presente nos apócrifos com narrativas que falam das façanhas pueris. São histórias incríveis de um menino que mata, pune, brinca, ressuscita. Histórias desse menino prodígio estão presentes em evangelhos como Pseudo-Tomé; Evangelho arménio da infância; Evangelho da Infância do Salvador; Evangelho do Pseudo-Mateus; Evangelho árabe da infância, etc. A piedade popular não suportou essas histórias. O evangelho História de José, o Carpinteiro fala que Jesus tinha 18 quando José morreu. Jesus encomendou o corpo de seu velho adotivo. José morreu com 111 anos de idade, segundo a tradição apócrifa.
Quanto ao Evangelho de Maria Madalena, sobre o qual sua pesque se aprofunda, que novas informações importantes ele apresenta? Existem referências ao amor (físico) entre Jesus e Maria Madalena? Qual seria o verdadeiro papel e importância de Maria Madalena para cristianismo?
A tradição apócrifa gnóstica conservou, para a relação entre Maria Madalena e Jesus, conceitos, no mínimo, controvertidos. A comunidade de Felipe assim descreve: “Eram três que acompanhavam sempre o Senhor: sua mãe Maria, a irmã dela, e Madalena, que é chamada de sua companheira. Com efeito, era “Maria” sua irmã, sua mãe e consorte”.
O entendimento desse texto diverge entre os tradutores. Alguns entendem que Maria era o nome da irmã de Maria, a mãe de Jesus. Outros dizem que Maria era também o nome de uma irmã de Jesus, tradição anotada por Epifânio. Também os apócrifos sobre Maria afirmam que Maria, a mãe de Jesus, teve uma outra irmã, de nome Maria, que se tornou a esposa de Cleofas, informação também anotada em Jó 19, 25. Na verdade, três Marias são importantes na vida de Jesus: a sua mãe, sua irmã e sua companheira. O último apelativo se refere a Maria Madalena. No evangelho de Maria Madalena, Pedro reconhece que Jesus amava Madalena diferentemente das outras mulheres (página 10, 1-3). Ele pergunta apavorado: “Será que Ele verdadeiramente a escolheu e a preferiu a nós?” (página 17,20). Levi, na defesa de Madalena, e reconhecendo que ela era a amada do Senhor, dá puxão de orelha em Pedro, quando lhe diz: “Pedro, tu sempre um irascível. Vejo-te agora te encarniçar contra a mulher, como o fazem nossos adversários. Pois bem! Se o mestre tornou-a digna, quem és tu para rejeitá-la? Seguramente, o mestre a conhece muito bem... Ele a amou mais que a nós”. No Evangelho de Felipe, uma outra informação surpreende os ouvidos menos avisados: “A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria Madalena mais que todos os discípulos, e a beijava na boca repetida vezes. Os discípulos lhe disseram: ‘Por que a amas mais que a nós?’ O Salvador respondeu dizendo: ‘Como é possível que eu não vos ame tanto quanto a ela?’” (página 63,34-64,5).
O apócrifo Perguntas de Maria e outros escritos da época revelam que certos gnósticos admitiam que Madalena era amante, parceira sexual ou esposa carnal de Jesus. Opinião considerada exagerada, a qual vem contestada em Pistis Sophia. Esses textos nos colocam, inevitavelmente, na discussão em torno à relação matrimonial: entre Jesus e Madalena. A discussão sobre essa temática tem alargado nos últimos decênios. Muitas hipóteses tem sido levantadas. O que dizer de tudo isso? Com certeza, a duvida vai permanecer para sempre. Dos evangelhos canônicos decorre que Jesus estava muito próximo das mulheres, desprezadas pelas correntes machistas da sociedade judaica. Jesus foi humano com elas, mostrou paixão para com Marta e Maria, libertou Madalena da possessão, etc.
Dos evangelhos apócrifos, descortina um Jesus que não só está próximo das mulheres, mas as ama com sua sexualidade, não necessariamente genital. Para os gnósticos, a união entre o masculino e o feminino era vista numa esfera espiritual de superação da divisão corpórea. Jesus e Madalena eram vistos como exemplo dessa integração. O beijo entre eles, a expressão desse desejo espiritual. Por isso, se diz que o beijo comunicava o saber. Um se transformava no outro, Madalena podia transmitir os ensinamentos do Mestre/Amado.
Esse modo de explicar o fato do beijo não tem o objetivo de suavizar a nossa visão “puritana” e “negativa” do corpo e dizer que o beijo entre eles era simbólico. Outras explicações são possíveis. O que devemos compreender é que, nos apócrifos, Jesus é visto como um homem que ama uma mulher, como todos os homens do seu tempo. Onde está o erro nisso? Jamais Jesus teria proibido essa relação humana e divina. Poderia até ter dito que alguns, para se dedicarem de forma integral ao Reino, optam pela vida sem relação sexual. Não duvido que isso seja possível. Por outro lado, não podemos negar o corpo. A sexualidade está em todos nós. O Eros precisa ser despertado sempre em nossas relações. Jesus soube fazer isso. Não necessariamente de forma genital.
Assim, acredito no amor entre Jesus e Madalena. Um amor que integra tudo em todos: um amor sublime e humano. O papel de Madalena, a amada de Jesus, e não a prostituta, como quiseram muitos, é o de devolver a dignidade á mulher. Madalena é mulher paixão, ternura e vigor.
Fonte: Revista Sexto Sentido nº 51, páginas 8-13. "As Origens Apócrifas do Cristianismo" - Jacir de Freitas Faria – Ed. Paulinas
O sacerdote franciscano Jacir de Freitas Faria, mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, realizou um estudo profundo das origens do cristianismo a partir do legado dos evangelhos apócrifos.
O livro das Origens Apócrifas do Cristianismo, do Frei Jacir de Freitas Faria, OFM (Ordem dos Frades Menores), é o volume 16 da série Teologias Bíblicas (Paulinas), que tem como objetivo aprofundar os estudos sobre as grandes correntes teológicas existentes no Primeiro e Segundo Testamentos. Ou, como explica Frei Jacir, “como o povo da Bíblia foi percebendo a revelação histórica de Deus na sua caminhada”.
Jacir diz que se “impôs” a nobre tarefa de estudar as origens do cristianismo que os evangelhos apócrifos nos legaram, porque é importante “olhar para trás”. O estudioso explica que “em nossos dias, cresce cada vez mais o desejo de redescobrir valores perdidos ou deixados de lado pela tradição cristã. Olhar par trás não significa cumprir a sina da mulher de Ló’, isto é, tornar-se uma estátua de sal. Olhar para trás significa deixar-se salgar pelo sal das primeiras comunidades, purificar-se de conceitos historicamente consagrados, sobretudo em relação à atuação das mulheres da primeira hora do cristianismo”.
Conversamos com Frei Jacir para saber mais respeito de seus estudos e outros temas relacionados aos evangelhos apócrifos.
O que são, exatamente, os textos apócrifos do cristianismo? Como considerar textos como o de O Livro de Enoch e O Livro de Noé, citados por alguns autores como sendo apócrifos? Eles estariam entre os apócrifos do que você chamou de Primeiro Testamento, ou Antigo Testamento?
Quando alguém usa o substantivo apócrifo, logo pensa em algo falso, recheado de mentiras. Na linguagem bíblica, apócrifo passou a significar texto não canônico (oficial) e, por conseguinte, não inspirado. Temos apócrifos do Primeiro e do Segundo Testamentos. Não considerando os inúmeros fragmentos de textos, podemos falar de 52 livros do Primeiro Testamento e 60 do Segundo. Esta classificação é também discutida.
A tradição protestante se encarregou de chamar os apócrifos também de pseudepígrafos, isto é, falsos escritos atribuídos à pessoa de notável autoridade na tradição, como Adão, Henoc, Moisés, etc. Os apócrifos, segundo a tradição protestante, são os livros excluídos da lista dos livros inspirados dos judeus, sendo que os cristãos os incluíram no cânon grego do Primeiro Testamento. A tradição católica, por sua vez, chamou estes livros de deuterocanônicos. São eles: Tobias, Judite, Sabedoria, 1 e 2 Macabeus, Eclesiástico e Baruc. Assim, os pseudepígrafos, oriundos do judaísmo e de uso restrito em determinados grupos, são os apócrifos para os católicos.
Creio que melhor seria não usar a terminologia pseudepígrafo, pois este substantivo tem uma conotação pejorativa. Na Bíblia canônica, também temos textos com teor de pseudepígrafo, isto é, o texto foi atribuído a um autor, mas não é de sua autoria. Cânticos dos Cânticos, O Livro de Enoch, assim como Livro dos Jubileus; Vida de Adão e Eva; I Henoque; II Henoque; Apocalipse de Abraão; Testamento de Abraão; Testamento de Jacó, etc, são considerados livros apócrifos do Segundo Testamento. Na lista dos livros apócrifos do Segundo Testamento, temos, por exemplo, evangelho de Maria Madalena, Tomé, Pedro etc, sejam eles de origem gnóstica ou não.
Em seu livro As Origens Apócrifas do Cristianismo, você diz que é preciso olhar para trás e estudar as origens do cristiuanismo, especialmente por meio dos evangelhos apócrifos. Essa é uma postura comum no cristianismo? É comum associarmos a palavra apócrifo a algo “proibido” ou “não verdadeiro”, especialmente quando citado por fontes católicas. Um exemplo clássico disso é o próprio Livro de Enoch, que também quase sempre é citado por pesquisadores que se referem à atuação de seres extraterrestre no passado longínquo da humanidade.
Quando eu defendo os apócrifos do Segundo Testamento, quero dizer que eles são importantes para resgate das origens do cristianismo. Sei que esta não é uma postura comum no meio cristão, seja ele católico ou não. Os apócrifos do Segundo Testamento, muitos deles preciosidades que não entraram no Cânon, podem e devem ser considerados também como voz alternativa de grupos heréticos, aqueles que pensavam diferente. Isto é a definição de “herético”.
É nom ser herético. Mesmo que neles não contenham verdades absolutas, mesmo que eles questionem, desinstalem a opinião sedimentada, vale a pena redescobri-los e lê-los de modo crítico e ecumênico. Jesus, Pedro, Madalena e os apóstolos, visto sob a ótica desses escritos, ganham uma nova feição, não menos importante que aquela que é objeto de nossa fé. Sabendo que a segunda é superior à primeira.
Com a minha pesquisa, quero convocar as pessoas a tomar consciência que nos apócrifos há exageros, mas não só isto. Deixemos de lado o que simplesmente é aberração nos apócrifos e tenhamos a coragem de dialogar com eles. A nossa tradição de fé que se perpetuou na oralidade, bem como em muitos dogmas, tem também fundamento nos livros apócrifos. A relação homem e mulher, tão debatida em nossos dias, encontra luzes no evangelho luzes no evangelho de Maria Madalena. Este o tema que discuto e aprofundo no meu próximo livro sobre os apócrifos, que está para ser lançado no próximo mês de março (2005). Ele leva o título de o Outro Pedro e a Outra Madalena Segundo os Apócrifos: Uma Leitura de Gênero, e está sendo publicado pela Editora Vozes.
Fala-se, também, que em alguns textos apócrifos – ou em um texto especifico, possivelmente entre os apócrifos encontrados em Nag Hammadi – é dito que Jesus Cristo pretendeu formar uma igreja – entendida como uma entidade, uma organização. Diz-se, ainda, que esse texto não é divulgação porque não é do interesse da Igreja Católica que esse conhecimento se torne público. Isso existe de fato? E sobre os rumores – ou boatos – de que existe um texto que pode ser atribuído ao próprio Cristo?
Os relatos sobre Jesus são uma ínfima parte daquilo que Jesus fez ou disse. A escolha dos fatos a serem escritos está relacionada com a experiência da comunidade que os escreve, após tê-lo guardado na memória.
Jesus nunca escreveu nada sobre ele. Nunca saberemos, de fato, toda a sua história, mas interpretações dela. Creio que distinguir a fala do Jesus histórico do da fé é tarefa não muito fácil. O que era dado de fé virou dado histórico e vice-versa. Estudos exegéticos e históricos mais recentes estimam que somente 18% das palavras atribuídas a Jesus nos evangelhos foram efetivamente pronunciadas por ele. Os evangelhos canônicos, pela sua beleza literária histórica e incontestável inspiração, continuam como obras fidedignas de nossa fé em Jesus, mas urge considerar os apócrifos.
A fundação da Igreja como instituição foi uma decorrência lógica da pregação, vida, morte e ressurreição de Jesus. Quem nele acreditou nos legou esta fé. Agora, dizer que Jesus, como nos tempos modernos, tinha como objetivo fundar uma Igreja é um exagero.
Sobre a definição de textos apócrifos, diz-se também que um texto apócrifo pode ser um texto falso ou falsificado no conteúdo ou titulo. O que isso significa, exatamente? Como definir se um texto é falso?
É difícil distinguir. Antigamente, acreditava-se que os textos sagrados eram ditados do alto. Hoje, não mais podemos acreditar nisto. Os apócrifos forma importantes, mas eles jamais poderão substituir a Bíblia. No entanto, com o avanço das ciências, não se permoite mais um estudo apenas piedoso dos textos sagrados. Não que todo estudo bíblico seja sempre piedoso, mar urge estudar, dialogar de forma responsável também com a literatura apócrifa, não somente com a canônica.
É verdade que os primeiro cristãos e seus sucessores, usando do bom senso, souberam selecionar os testemunhos escritos sobre a vida de Jesus e de seus seguidores. Um livro que não era usado por muitas comunidades tinha menos valor do que aquele que era amplamente conhecido. E também é claro que a seleção dos livros para entrar na Bíblia obedeceu a critérios de inspiração. Por outro lado, também não deixaram de entrar em jogo os interesses das lideranças cristãs e judaicas. Não exageramos quando afirmamos que os apóstolos, humanos como nós, disputaram o poder de mando na comunidade. E, nessa batalha, as mulheres foram deixadas de laldo. Embora muitas delas tenham feito valer a sua opinião, elas forma desprezadas. Até o século II da era Comum (E.C.), entre grupos de cristãos gnósticos, as mulheres exerciam mistérios de direção nas comunidades (mestras, sacerdotisas); depois disso, era considerado herege que se concedesse poder às mulheres.
Existem apócrifos que cobrem a fase da vida de Jesus da qual sempre diz que pouco ou nada se sabe? Em caso positivo, quais são esses textos e o que eles dizem de importante?
A infância de Jesus, que os evangelhos canônicos não mencionam, está presente nos apócrifos com narrativas que falam das façanhas pueris. São histórias incríveis de um menino que mata, pune, brinca, ressuscita. Histórias desse menino prodígio estão presentes em evangelhos como Pseudo-Tomé; Evangelho arménio da infância; Evangelho da Infância do Salvador; Evangelho do Pseudo-Mateus; Evangelho árabe da infância, etc. A piedade popular não suportou essas histórias. O evangelho História de José, o Carpinteiro fala que Jesus tinha 18 quando José morreu. Jesus encomendou o corpo de seu velho adotivo. José morreu com 111 anos de idade, segundo a tradição apócrifa.
Quanto ao Evangelho de Maria Madalena, sobre o qual sua pesque se aprofunda, que novas informações importantes ele apresenta? Existem referências ao amor (físico) entre Jesus e Maria Madalena? Qual seria o verdadeiro papel e importância de Maria Madalena para cristianismo?
A tradição apócrifa gnóstica conservou, para a relação entre Maria Madalena e Jesus, conceitos, no mínimo, controvertidos. A comunidade de Felipe assim descreve: “Eram três que acompanhavam sempre o Senhor: sua mãe Maria, a irmã dela, e Madalena, que é chamada de sua companheira. Com efeito, era “Maria” sua irmã, sua mãe e consorte”.
O entendimento desse texto diverge entre os tradutores. Alguns entendem que Maria era o nome da irmã de Maria, a mãe de Jesus. Outros dizem que Maria era também o nome de uma irmã de Jesus, tradição anotada por Epifânio. Também os apócrifos sobre Maria afirmam que Maria, a mãe de Jesus, teve uma outra irmã, de nome Maria, que se tornou a esposa de Cleofas, informação também anotada em Jó 19, 25. Na verdade, três Marias são importantes na vida de Jesus: a sua mãe, sua irmã e sua companheira. O último apelativo se refere a Maria Madalena. No evangelho de Maria Madalena, Pedro reconhece que Jesus amava Madalena diferentemente das outras mulheres (página 10, 1-3). Ele pergunta apavorado: “Será que Ele verdadeiramente a escolheu e a preferiu a nós?” (página 17,20). Levi, na defesa de Madalena, e reconhecendo que ela era a amada do Senhor, dá puxão de orelha em Pedro, quando lhe diz: “Pedro, tu sempre um irascível. Vejo-te agora te encarniçar contra a mulher, como o fazem nossos adversários. Pois bem! Se o mestre tornou-a digna, quem és tu para rejeitá-la? Seguramente, o mestre a conhece muito bem... Ele a amou mais que a nós”. No Evangelho de Felipe, uma outra informação surpreende os ouvidos menos avisados: “A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria Madalena mais que todos os discípulos, e a beijava na boca repetida vezes. Os discípulos lhe disseram: ‘Por que a amas mais que a nós?’ O Salvador respondeu dizendo: ‘Como é possível que eu não vos ame tanto quanto a ela?’” (página 63,34-64,5).
O apócrifo Perguntas de Maria e outros escritos da época revelam que certos gnósticos admitiam que Madalena era amante, parceira sexual ou esposa carnal de Jesus. Opinião considerada exagerada, a qual vem contestada em Pistis Sophia. Esses textos nos colocam, inevitavelmente, na discussão em torno à relação matrimonial: entre Jesus e Madalena. A discussão sobre essa temática tem alargado nos últimos decênios. Muitas hipóteses tem sido levantadas. O que dizer de tudo isso? Com certeza, a duvida vai permanecer para sempre. Dos evangelhos canônicos decorre que Jesus estava muito próximo das mulheres, desprezadas pelas correntes machistas da sociedade judaica. Jesus foi humano com elas, mostrou paixão para com Marta e Maria, libertou Madalena da possessão, etc.
Dos evangelhos apócrifos, descortina um Jesus que não só está próximo das mulheres, mas as ama com sua sexualidade, não necessariamente genital. Para os gnósticos, a união entre o masculino e o feminino era vista numa esfera espiritual de superação da divisão corpórea. Jesus e Madalena eram vistos como exemplo dessa integração. O beijo entre eles, a expressão desse desejo espiritual. Por isso, se diz que o beijo comunicava o saber. Um se transformava no outro, Madalena podia transmitir os ensinamentos do Mestre/Amado.
Esse modo de explicar o fato do beijo não tem o objetivo de suavizar a nossa visão “puritana” e “negativa” do corpo e dizer que o beijo entre eles era simbólico. Outras explicações são possíveis. O que devemos compreender é que, nos apócrifos, Jesus é visto como um homem que ama uma mulher, como todos os homens do seu tempo. Onde está o erro nisso? Jamais Jesus teria proibido essa relação humana e divina. Poderia até ter dito que alguns, para se dedicarem de forma integral ao Reino, optam pela vida sem relação sexual. Não duvido que isso seja possível. Por outro lado, não podemos negar o corpo. A sexualidade está em todos nós. O Eros precisa ser despertado sempre em nossas relações. Jesus soube fazer isso. Não necessariamente de forma genital.
Assim, acredito no amor entre Jesus e Madalena. Um amor que integra tudo em todos: um amor sublime e humano. O papel de Madalena, a amada de Jesus, e não a prostituta, como quiseram muitos, é o de devolver a dignidade á mulher. Madalena é mulher paixão, ternura e vigor.
Fonte: Revista Sexto Sentido nº 51, páginas 8-13. "As Origens Apócrifas do Cristianismo" - Jacir de Freitas Faria – Ed. Paulinas
"Não minha, Senhor. Não é minha, mas sim TODA TUA a Glória"
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