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Anciã africana mostra alguidar com imagem original do orixá Exu
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Os primeiros europeus que tiveram contato na África com o culto do Orixá Exú dos iorubás, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atribuíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Príapo e a do Diabo dos judeus e cristãos.
A primeira por causa dos altares, representações materiais e símbolos fálicos do Orixá; a segunda em razão de suas atribuições específicas no panteão dos Orixás e voduns e suas qualificações morais narradas pela mitologia, que o mostra como um Orixá que contraria as regras mais gerais de conduta aceitas socialmente. Atribuições e caráter que os recém-chegados cristãos não podiam conceber, enxergar sem o viés etnocêntrico e muito menos aceitar.
Nas palavras de Pierre Verger, Exú “tem um caráter suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente”, de modo que “os primeiros missionários, espantados com tal conjunto, assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza, elevação e amor de Deus”.
Assim, os escritos de viajantes, missionários e outros observadores que estiveram em território fom ou Iorubá entre os séculos XVIII e XIX, todos eles de cultura cristã, quando não cristãos de profissão, descreveram Exú sempre ressaltando aqueles aspectos que o mostravam, aos olhos ocidentais, como entidade destacadamente sexualizada e demoníaca.
Um dos primeiros escritos que se referem a Legba, senão o primeiro, é devido a Pommegorge, do qual se publicou em 1789 um relato de viagem informando que “a um quarto de légua do forte os daomeanos há um deus Príapo, feito grosseiramente de terra, com seu principal atributo (o falo), que é enorme e exagerado em relação à proporção do resto do corpo”. De 1847 temos o testemunho de John Duncan, que escreveu: “As partes baixas (a genitália) da estátua são grandes, desproporcionadas e expostas da maneira mais nojenta”.
É de 1857 a descrição do pastor Thomas Bowen, em que é enfatizado o outro aspecto atribuído pelos ocidentais a Exú: “Na língua iorubá o Diabo é denominado Exú, aquele que foi enviado outra vez, nome que vem de su, jogar fora, e Elegbara, o poderoso, nome devido ao seu grande poder sobre as pessoas”.
Trinta anos depois, o abade Pierre Bouche foi bastante explícito: “Os negros reconhecem em Satã o poder da possessão, pois o denominam comumente Elegbara, isto é, aquele que se apodera de nós”. E há muitos outros relatos antigos já citados por Verger, nenhum menos desfavorável ao Deus Mensageiro que esses.
Em 1884, publicou-se na França o livro Fétichisme e Féticheurs, de autoria de R. P. Baudin, padre católico da Sociedade das Missões Africanas de Lyon e missionário na Costa dos Escravos. Foi esse o primeiro livro a tratar sistematicamente da religião dos iorubás.
O relato do padre Baudin é rico em pormenores e precioso em informações sobre o panteão dos Orixás e aspectos básicos do culto, tanto que o livro permanece como fonte pioneira da qual os pesquisadores contemporâneos não podem se furtar. Mas suas interpretações do papel de Exú no sistema religioso dos povos iorubás, a partir das observações feitas numa perspectiva cristã do século XIX, são devastadoras, e amplamente reveladoras de imagens que até hoje povoam o imaginário popular no Brasil, para não dizer do próprio povo-de-santo que cultua Exú, pelo menos em sua grande parte.
Assim é retratado Exú por padre Baudin:
“O chefe de todos os gênios maléficos, o pior deles e o mais temido, é Exú, palavra que significa o rejeitado; também chamado Elegbá ou Elegbara, o forte, ou ainda Ogongo Ogó, o gênio do bastão nodoso.
Para se prevenir de sua maldade, os negros colocam em suas casas o ídolo de Olarozê, gênio protetor do lar, que, armado de um bastão ou sabre, lhe protege a entrada. Mas, a fim de se pôr a salvo das crueldades de Elegbá, quando é preciso sair de casa para trabalhar, não se pode jamais esquecer de dar a ele parte de todos os sacrifícios.
Quando um negro quer se vingar de um inimigo, ele faz uma copiosa oferta a Elegbá e o presenteia com uma forte ração de aguardente ou de vinho de palma. Elegbá fica então furioso e, se o inimigo não estiver bem munido de talismãs, correrá grande perigo. É este gênio malvado que, por si mesmo ou por meio de seus companheiros espíritos, empurra o homem para o mal e, sobretudo, o excita para as paixões vergonhosas.
Muitas vezes, vi negros que, punidos por roubo ou outras faltas, se desculpavam dizendo: ‘Eshu l’o ti mi’, isto é, ‘Foi Exú’ que me impeliu’. A imagem hedionda desse gênio malfazejo é colocada na frente de todas as casas, em todas as praças e em todos os caminhos. Elegbá é representado sentado, as mãos sobre os joelhos, em completa nudez, sob uma cobertura de folhas de palmeira. O ídolo é de terra, de forma humana, com uma cabeça enorme. Penas de aves representam seus cabelos; dois búzios formam os olhos, outros, os dentes, o que lhe dá uma aparência horrível.
Nas grandes circunstâncias, ele é inundado de azeite de dendê e sangue de galinha, o que lhe dá uma aparência mais pavorosa ainda e mais nojenta. Para completar com dignidade a decoração do ignóbil símbolo do Príapo africano, colocam-se junto dele cabos de enxada usados ou grossos porretes nodosos. Os abutres, seus mensageiros, felizmente vêm comer as galinhas, e os cães, as outras vítimas a ele imoladas, sem os quais o ar ficaria infecto.
O templo principal fica em Woro, perto de Badagry, no meio de um formoso bosque encantado, sob palmeiras e árvores de grande beleza. Perto da laguna em que se realiza uma grande feira, o chão é juncado de búzios que os negros atiram como oferta a Elegbá, para que ele os deixe em paz. Uma vez por ano, o feiticeiro de Elegbá junta os búzios para comprar um escravo que lhe é sacrificado, e aguardente para animar as danças, ficando o resto para o feiticeiro. O caso seguinte demonstra a inclinação de Elegbá para fazer o mal.
O texto termina assim, sem entrar em pormenores que certamente eram impróprios à formação pudica do missionário, há a vaga referência a Príapo, o deus fálico greco-romano, guardião dos jardins e pomares, que no sul da Itália imperial veio a ser identificado com o deus Lar dos romanos, guardião das casas e também das praças, ruas e encruzilhadas, protetor da família e patrono da sexualidade".
Não há referências textuais sobre o caráter diabólico atribuído pelo missionário a Exú, que a descrição prenuncia, mas há um dado muito interessante na gravura que ilustra a descrição e que revela a direção da interpretação de Baudin.
Na ilustração aparece um homem sacrificando uma ave a Exú, representado por uma estatueta protegida por uma casinhola situada junto à porta de entrada da casa. (veja na imagem acima)
A legenda da figura diz: “Elegbá, o malvado espírito ou o Demônio”. Príapo e Demônio, as duas qualidades de Exú para os cristãos. Já está lá, nesse texto católico de 1884, o binômio pecaminoso impingido a Exú no seu confronto com o Ocidente: sexo e pecado, luxúria e danação, fornicação e maldade.
Nunca mais Exú se livraria da imputação dessa dupla pecha, condenado a ser o Orixá mais incompreendido e caluniado do panteão afro-brasileiro, como bem lembrou Juana Elbein dos Santos, praticamente a primeira pesquisadora no Brasil a se interessar pela recuperação dos atributos originais africanos de Exú (encontre aqui os livros dela), atributos que foram no Brasil amplamente encobertos pelas características que lhe foram impostas pelas reinterpretações católicas na formação do modelo sincrético que gabaritou a religião dos Orixás no Brasil.
Para os antigos iorubás, os homens habitam a Terra, o Aiê, e os deuses Orixás, o Orum. Mas muitos laços e obrigações ligam os dois mundos. Os homens alimentam continuamente os Orixás, dividindo com eles sua comida e bebida, os vestem, adornam e cuidam de sua diversão. Os Orixás são parte da família, são os remotos fundadores das linhagens cujas origens se perdem no passado mítico. Em troca dessas oferendas, os Orixás protegem, ajudam e dão identidade aos seus descendentes humanos.
Também os mortos ilustres merecem tal cuidado, e sua lembrança os mantêm vivos no presente da coletividade, até que um dia possam renascer como um novo membro de sua mesma família. É essa a simples razão do sacrifício: alimentar a família toda, inclusive os mais ilustres e mais distantes ancestrais, alimentar os pais e mães que estão na origem de tudo, os deuses, numa reafirmação permanente de que nada se acaba e que nos laços comunitários estão amarrados, sem solução de continuidade, o presente da vida cotidiana e o passado relatado nos mitos, do qual o presente é reiteração.
As oferendas dos homens aos Orixás devem ser transportadas até o mundo dos deuses. Exú tem este encargo, de transportador. Também é preciso saber se os Orixás estão satisfeitos com a atenção a eles dispensada pelos seus descendentes, os seres humanos. Exú propicia essa comunicação, traz suas mensagens, é o Mensageiro.
É fundamental para a sobrevivência dos mortais receber as determinações e os conselhos que os Orixás enviam do Aiê. Exú é o portador das orientações e ordens, é o porta-voz dos deuses e entre os deuses. Exú faz a ponte entre este mundo e mundo dos Orixás, especialmente nas consultas oraculares. Como os Orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o trabalho de intermediário do mensageiro e transportador Exú.
Nada se faz sem ele, nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. Sua presença está consignada até mesmo no primeiro ato da Criação: sem Exú, nada é possível. O poder de Exú, portanto, é incomensurável".
Exú deve então receber os sacrifícios votivos, deve ser propiciado, sempre que algum Orixá recebe oferenda, pois o sacrifício é o único mecanismo, no Candomblé, através do qual os humanos se dirigem aos Orixás, e o sacrifício significa a reafirmação dos laços de lealdade, solidariedade e retribuição entre os habitantes do Aiê e os habitantes do Orum.
Sempre que um Orixá é interpelado, Exú também o é, pois a interpelação de todos se faz através dele. É preciso que ele receba oferenda, sem a qual a comunicação não se realiza. Por isso é costume dizer que Exú não trabalha sem pagamento, o que acabou por imputar-lhe, quando o ideal cristão do trabalho desinteressado da caridade se interpôs entre os santos católicos e os Orixás, a imagem de mercenário, interesseiro e venal.
Como mensageiro dos deuses, Exú tudo sabe, não há segredos para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias. Exú trabalha para todos, não faz distinção entre aqueles a quem deve prestar serviço por imposição de seu cargo, o que inclui todas as divindades, mais os antepassados e os humanos.
Exú não pode ter preferência por este ou aquele. Mas talvez o que o distingue de todos os outros deuses é seu caráter de transformador: Exú é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança. Não é pois de se estranhar que seja considerado perigoso e temido, posto que se trata daquele que é o próprio princípio do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites e, assim, tudo o que contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu".
Exú carrega qualificações morais e intelectuais próprias do responsável pela manutenção e funcionamento do status quo, inclusive representando o princípio da continuidade garantida pela sexualidade e reprodução humana, mas ao mesmo tempo ele é o inovador que fere as tradições, um ente portanto nada confiável, que se imagina, por conseguinte, ser dotado de caráter instável, duvidoso, interesseiro, turbulento e arrivista.
Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole numerosa e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua. É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das linhagens, clãs e cidades.
Exú é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz sem uma numerosa prole, e a atividade sEXUal é decisiva para isso. É da relação íntima com a reprodução e a sEXUalidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam, que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e desregrado de Exú-Elegbara.
Isso tudo contribuiu enormemente para modelar sua imagem estereotipada de Orixá difícil e perigoso que os cristãos reconheceram como demoníaca. Quando a religião dos Orixás, originalmente politeísta, veio a ser praticada no Brasil do século XIX por negros que eram ao mesmo tempo católicos, todo o sistema cristão de pensar o mundo em termos do bem e do mal deu um novo formato à religião africana, no qual um novo papel esperava por Exú.
O sincretismo não é, como se pensa, uma simples tábua de correspondência entre Orixás e santos católicos, assim como não representava o simples disfarce católico que os negros davam ao seus Orixás para poder cultuá-los livres da intransigência do senhor branco, como de modo simplista se ensina nas escolas até hoje.
O sincretismo representa a captura da religião dos Orixás dentro de um modelo que pressupõe, antes de mais nada, a existência de dois pólos antagônicos que presidem todas as ações humanas: o bem e o mal; de um lado a virtude, do outro o pecado. Essa concepção, que é judaico-cristã, não existia na África.
As relações entre os seres humanos e os deuses, como ocorre em outras antigas religiões politeístas, eram orientadas pelos preceitos sacrificiais e pelo tabu, e cada Orixá tinha suas normas prescritivas e restritivas próprias aplicáveis aos seus devotos particulares, como ainda se observa no Candomblé, não havendo um código de comportamento e valores único aplicável a toda a sociedade indistintamente, como no cristianismo, uma lei única que é a chave para o estabelecimento universal de um sistema que tudo classifica como sendo do bem ou do mal, em categorias mutuamente exclusivas.
No catolicismo, o sacrifício foi substituído pela oração e o tabu, pelo pecado, regrado por um código de ética universalizado que opera o tempo todo com as noções de bem e mal como dois campos em luta: o de Deus, que os católicos louvam nas três pessoas do Pai, Filho e Espírito Santo, que é o lado do bem, e o do mal, que é o lado do Diabo em suas múltiplas manifestações. Abaixo de Deus estão os anjos e os santos, santos que são humanos mortos que em vida abraçaram as virtudes católicas, às vezes por elas morrendo.
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Na imagem a representação do principais Orixás, em procissão, segurando um pano branco sobre Oxalá (reprodução/internet)
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O lado do bem, digamos, foi assim preenchido pelos Orixás, exceto Exú, ganhando Oxalá, o Orixá criador da humanidade, o papel de Jesus Cristo, o Deus Filho, mantendo-se Oxalá no topo da hierarquia, posição que já ocupava na África, donde seu nome Orixalá ou Orixá Nlá, que significa o Grande Orixá. O remoto e inatingível Deus supremo Olorum dos iorubás ajustou-se à concepção do Deus Pai judaico-cristão, enquanto os demais Orixás ganharam a identidade de santos.
Mas ao vestirem a camisa de força de um modelo que pressupõe as virtudes católicas, os Orixás sintetizados perderam muito de seus atributos originais, especialmente aqueles que, como no caso da sexualidade entendida como fonte de pecado, podem ferir o campo do bem, como explicou Monique Augras, ao mostrar que muitas características africanas das Grandes Mães, inclusive Iemanjá e Oxum, foram atenuadas ou apagadas no culto brasileiro dessas deusas e passaram a compor a imagem pecaminosa de Pombagira, o Exú feminizado do Brasil, no outro pólo do modelo, em que Exú reina como o senhor do mal.
Foi sem dúvida o processo de cristianização de Oxalá e outros Orixás que empurrou Exú para o domínio do inferno católico, como um contraponto requerido pelo molde sincrético. Pois, ao se ajustar a religião dos Orixás ao modelo da religião cristã, faltava evidentemente preencher o lado satânico do esquema Deus-Diabo, bem-mal, salvação-perdição, céu-inferno, e quem melhor que Exú para o papel do demônio?
Sua fama já não era das melhores e mesmo entre os seguidores dos Orixás sua natureza, que não se ajusta aos modelos comuns de conduta, e seu caráter não acomodado, autônomo e embusteiro já faziam dele um ser contraventor, desviante e marginal, como o Diabo.
A propósito do culto de Exú na Bahia do final do século XIX, o médico Raimundo Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia e pioneiro dos estudos afro-brasileiros, escreveu em 1900 as seguintes palavras:
"Exú, Bará ou Elegbará é um santo ou Orixá que os afro-baianos têm grande tendência a confundir com o Diabo. Tenho ouvido mesmo de negros africanos que todos os santos podem se servir de Exú para mandar tentar ou perseguir a uma pessoa. Em uma pelo motivo mais fútil, não é raro entre nós ouvir-se gritar pelos mais prudentes: Fulano olha Exú! Precisamente como diriam velhas beatas: Olha a tentação do demônio! No entanto, sou levado a crer que esta identificação é apenas o produto de uma influência do ensino católico".
Transfigurado no Diabo, Exú teve que passar por algumas mudanças para se adequar ao contexto cultural brasileiro hegemonicamente católico. Assim, num meio em que as conotações de ordem sexual eram fortemente reprimidas, o lado priápico de Exú foi muito dissimulado e em grande parte esquecido.
Suas imagens brasileiras perderam o esplendor fálico do explícito Elegbará, disfarçando-se tanto quanto possível seus símbolos sexuais, pois mesmo sendo transformado em Diabo, era então um Diabo de cristãos, o que impôs uma inegável pudicícia que Exú não conhecera antes. Em troca ganhou chifres, rabo e até mesmo os pés de bode próprios de demônios antigos e medievais dos católicos.
Com o avanço das concepções cristãs sobre a religião dos Orixás, ao qual vieram se juntar no final do século XIX as influências do espiritismo kardecista, que também absorvera orientações, visões e valores éticos cristãos, Exú foi cada vez mais empurrado para o lado do mal, cada vez mais obrigado, pelos seus próprios seguidores sincréticos, a desempenhar o papel do demônio.
O preceito segundo o qual Exú sempre recebe oferenda antes das demais divindades serem propiciadas, e que nada mais representa que o pagamento adiantado que Exú deve ganhar para levar as oferendas aos outros deuses, acabou sendo bastante desvirtuado. Passou-se a acreditar que as oferendas e homenagens preliminares a Exú devem ser feitas para que ele simplesmente não tumultue ou atrapalhe as cerimônias realizadas a seguir. Grande parte dos devotos dos Orixás pensam e agem como se Exú devesse assim ser evitado e afastado, momentaneamente distraído com as homenagens, neutralizado como o Diabo com que agora é confundido.
Seu culto transformou-se assim num culto de evitação. Isto pode ser observado hoje em qualquer parte do Brasil, na maior parte dos terreiros de Candomblé e Umbanda, e também na África e em Cuba.
Brasil, na maior parte dos terreiros de Candomblé e Umbanda, e também na África e em Cuba. Faz-se a oferenda não para que Exú cumpra sua missão de levar aos Orixás as oferendas e pedidos dos humanos e trazer de volta as respostas, mas simplesmente para que ele não impeça por meio de suas artimanhas, brincadeiras e ardis a realização de todo o culto. Exú é pago para não atrapalhar, transformou-se num empecilho, num estorvo, num embaraço. Como se não bastasse, é tido como aquele que se vende por um prato de farofa e um copo de aguardente.
É evidente que em certos terreiros da religião dos Orixás, sobretudo em uns poucos Candomblés antigos mais próximos das raízes culturais africanas, cultiva-se uma imagem de Exú calcada em seu papel de Orixá mensageiro dos deuses, cujas atribuições não são muito diferentes daquelas trazidas da África. Nesse meio restrito, sua figura continua sendo contraditória e problemática, mas é discreta sua ligação sincrética com o Diabo católico.
O mesmo não ocorre quando olhamos para a imagem de Exú cultivada por religiões oponentes, imagem que é largamente inspirada nos próprios cultos afro-brasileiros e que descrevem Exú como entidade essencialmente do mal. A imagem de Exú consolidada por essas religiões, especialmente as evangélicas, que usam fartamente o rádio e a televisão como meios de propaganda religiosa, extravasa para os mais diferentes campos religiosos e profanos da cultura brasileira e faz dele o Diabo brasileiro por excelência.
A imagem de Exú, o Diabo, é fartamente explorada pelas religiões que disputam seguidores com a Umbanda e o Candomblé no chamado mercado religioso, especialmente as igrejas neopentecostais.
Como mostrou Ricardo Mariano, o neopentecostalismo caracteriza-se por “enxergar a presença e ação do Diabo em todo lugar e em qualquer coisa e até invocar a manifestação de demônios nos cultos” para humilhá-los e os exorcizar, demônios aos quais os evangélicos atribuem todos os males que afligem as pessoas e que identificam como sendo, especialmente, entidades da Umbanda, deuses do Candomblé e espíritos do Kardecismo, ocupando os Exús e Pombagiras um lugar de destaque no palco em que os pastores exorcistas fazem desfilar o Diabo em suas múltiplas versões.
Em ritos de exorcismo televisivos da Igreja Universal do Reino de Deus, que representa hoje o mais radical e agressivo oponente cristão das religiões afro-brasileiras, Exús e Pombagiras são mostrados no corpo possuído de novos conversos saídos da Umbanda e do Candomblé, com a exibição de posturas e gestos estereotipados aprendidos pelos ex-seguidores nos próprios terreiros afro-brasileiros.
Todos os males, inclusive o desemprego, a miséria, a crise familiar, entre outras aflições que atingem os cotidianos das pessoas, sobretudo os pobres, são considerados pelos neopentecostais como tendo origem no Diabo, identificado preferencialmente com as entidades afro-brasileiras, conforme também mostra Ronaldo Almeida.
O desemprego, por exemplo, ao invés de ser considerado como decorrente das injustiças sociais e problemas da estrutura da sociedade, como explicariam os católicos das comunidades eclesiais de base, é visto pela Igreja Universal como resultante da possessão de alguma entidade como Exú Tranca Rua ou Exú Sete Encruzilhadas. "Neste caso, o exorcismo deve expulsar o Exú que provoca o desemprego".
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Imagem de Exu Caveira, com a aparência que ele usa para trabalhar no Umbral
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Os evangélicos se valem ritualmente do transe de incorporação afro-brasileiro para trazer à cena as entidades que eles identificam como demoníacas e se propõem a expulsar em ritos que chamam de libertação. Mariza Soares identifica outro paralelo muito expressivo entre o rito umbandista do transe e o rito exorcista pentecostal.
Diz ela: “A sexta-feira é conhecida na Umbanda como o dia das giras de Exú que se dão geralmente à noite. A meia-noite, ‘hora grande’ de sexta para sábado é o momento em que os Exús se manifestam e trabalham. É justamente nesta mesma hora que nas igrejas “evangélicas” estão sendo realizadas as cerimônias onde esses Exús são invocados para, em seguida, serem expulsos dos corpos das pessoas presentes”.
Ao descrever um ritual exorcista presenciado em um templo da Igreja Universal no bairro de Santa Cecília, no centro de São Paulo, em que se expulsava uma entidade que foi incorporada através do transe e que se identificou como Exú Tranca Rua, Mariano registrou os versos do cântico então entoado freneticamente pelos fiéis: “Tranca Rua e Pombagira fizeram combinação/ combinaram acabar com a vida do cristão/ torce, retorce, você não pode não/ eu tenho Jesus Cristo dentro do meu coração”.
Eles acreditam que há um pacto firmado entre as entidades demoníacas para se apossar dos homens e os destruir pela doença, pelo infortúnio, pela morte. É o que representa Exú para os neopentecostais, mas essa imagem está longe de estar confinada às suas igrejas.
Entre os seguidores do catolicismo, a velha animosidade contra as religiões afro-brasileiras, que parecia arrefecida desde a década de 1960, quando a igreja católica deixou de lado a propaganda contra a Umbanda, que chamava de “baixo espiritismo”, reavivou-se com a Renovação Carismática. Movimento conservador que divide com o pentecostalismo muitas características, inclusive a intransigência para com outras religiões, o catolicismo carismático voltou a bater na tecla de que as divindades e entidades afro-brasileiras não passam de manifestações do Diabo, que se apresenta a todos, sem disfarce, nas figuras de Exús e Pombagiras.
Está de volta a velha perseguição católica aos cultos afro-brasileiros, agora sem contar com o braço armado do estado, cuja polícia, pelo menos até o início da década de 1940, prendia praticantes e fechava terreiros, mas podendo se valer de meios de propaganda igualmente eficazes. Exú, o Diabo, mobiliza e legitima, aos olhos cristãos, o ódio religioso contra a Umbanda e o Candomblé, corporificado em verdadeira guerra religiosa de evangélicos contra afro-brasileiros.
Essa é a concepção mais difundida que se tem de Exú na sociedade brasileira, é o que se vê na televisão e o que se dissemina pela mídia. Na idéia mais corrente que se tem de Exú, ele está sempre associado com a magia negra, com a produção do mal e até mesmo com a morte, uma idéia que certos feiticeiros que se apresentam como sacerdotes afro-brasileiros fazem questão de propagar.
É amplo o espectro da contrapropaganda que vitimiza o Orixá mensageiro, contra o qual parece confluirem as mais diferentes dimensões do preconceito que envolve em nosso país os negros e a herança africana. De fato, em vários episódios de magia negra ocorridos recentemente no Brasil, com o assassinato de crianças e adultos, Exú e Pombagira têm sido apontados pela mídia como motivadores e promotores do ato criminoso.
Num desses casos, ocorrido na década de 1980, no Rio de Janeiro, um comerciante foi morto a mando da mulher por causa de sua suposta impotência sexual. Depois de ter fracassada a aplicação de vários procedimentos mágicos supostamente recomendados por Pombagira, ela mesma teria sugerido o uso de arma de fogo para que a mulher se livrasse do incapaz e incômodo marido. Os implicados acabaram condenados, mas a própria Pombagira, em transe, acabou comparecendo à presença do juiz. E lá estavam todos os ingredientes que têm, por mais de dois séculos, alimentado a concepção demoníaca que se forjou de Exú entre nós: sexo, magia negra, atentado à vida, crime.
No interior do segmento afro-brasileiro, podemos contudo observar nos dias de hoje um movimento que encaminha Exú numa espécie de retorno aos seus papéis e status africanos tradicionais. Em terreiros de Candomblé que defendem ou reintroduzem concepções, mitologia e rituais buscados na tradição africana, tanto quanto possível, especialmente naqueles terreiros que têm lutado por abandonar o sincretismo católico, Exú é enfaticamente tratado como um Orixá igual aos demais, buscando-se apagar as conotações de Diabo, escravo e inimigo que lhe tem sido comumente atribuídas.
No Candomblé cada membro do culto deve ser iniciado para um Orixá específico, que é aquele considerado o seu antepassado mítico, sua origem de natureza divina. Os que eram identificados pelo jogo oracular dos búzios como filhos de Exú estavam sujeitos a ser reconhecidos como filhos do Diabo e, por isso, acabavam sendo iniciados para outro Orixá, especialmente para Ogum Xoroquê, uma qualidade de Ogum com profundas ligações com o Mensageiro. Até pouco tempo, eram raros e notórios os filhos de Exú iniciados para Exú. Isso vem mudando à medida que avança o movimento de dessincretização e já há filhos de Exú orgulhosos de sua origem.
Hoje em dia, em muitos terreiros de Candomblé, concepções e práticas católicas que foram incorporadas à religião dos Orixás em solo brasileiro vão sendo questionadas e deixadas de lado. Quando isso ocorre, Exú vai perdendo, dentro do mundo afro-brasileiro, a condição de Diabo que a visão maniqueísta do catolicismo a respeito do bem e do mal a ele impingiu, uma vez que foi exatamente a cristianização dos Orixás que transformou Oxalá em Jesus Cristo, Iemanjá em Nossa Senhora, outros Orixás em santos católicos, e Exú no Diabo.
Nesse processo de dessincretização, que é um dos aspectos do processo de africanização por que passa certo segmento do Candomblé, Exú tem alguma chance de voltar a ser simplesmente o Orixá Mensageiro que detém o poder da transformação e do movimento, que vive na estrada, freqüenta as encruzilhadas e guarda a porta das casas, Orixá controvertido e não domesticável, porém nem santo nem demônio.
Axé!
O TEXTO ACIMA É PARTE INTEGRANTE DE UMA PESQUISA REALIZADA PARA ELABORAÇÃO DE UMA APOSTILA, CRIADA POR JOÃO LUIZ - AUTORES: VÁRIOS