O papa confirma sua opção pelos pobres e sua estatura de estadista ao reunir em Roma os movimentos populares
Poucos dias depois do tempestuoso epílogo do Sínodo sobre a família, se alguém considerasse incerta a rota com que o papa Francisco dirige o navio da Igreja, teria rapidamente de mudar de opinião.
Com firmeza absoluta, própria de um monarca, Bergoglio defenestrou um dos principais opositores, o cardeal estadunidense Raymond Burke, do cargo de prefeito do Tribunal Supremo, o máximo órgão jurisdicional da Santa Sé.
Depois de ter criticado Francisco pelas posições expressas contra os excessos do capitalismo e de se posicionar como tradicionalista em todas as questões controvertidas do recente Sínodo, Burke teve a ousadia, dias atrás, de declarar que a Igreja era “um barco sem leme”.
Foi assim que o timoneiro jesuíta, para demonstrar o contrário, considerou conveniente para o cardeal o repousante novo encargo de Patrono da Ordem de Malta, ilha do Mediterrâneo onde nasceu a rosa dos ventos, a fim de permitir-lhe tempo suficiente para uma reflexão mais ponderada sobre assuntos de navegação.
Nos mesmos dias, beneficiando-se de uma rodada de nomeações, o papa Francisco aproveitou para dar continuidade à sua revolução organizacional na Cúria Romana, cortando cabeças hostis e promovendo prelados fiéis, como no caso do novo responsável pelas relações com os Estados, ou seja, o ministro do Exterior da Igreja, o bispo Paul Richard Gallagher, inglês de 60 anos, nascido em Liverpool no mesmo subúrbio dos Beatles, Allerton, e com ampla experiência internacional nos cinco continentes.
É impressionante, na figura do papa Francisco, a mistura de dois estilos e culturas que raramente se encontram no mesmo indivíduo, muito menos em um religioso: a espiritualidade e a delicadeza de quem vive profundamente a compaixão pelos seres humanos, os mais humildes em particular, e, de outro lado, o temperamento atrevido e a mão firme para perseguir coerentemente seu projeto religioso, recorrendo aos meios políticos mais audaciosos. A quintessência dos espíritos franciscano e jesuíta, harmoniosamente mesclados.
Recentemente, ajudou na compreensão e definição do personagem um dos melhores aliados de Francisco na Cúria Romana, o enérgico cardeal alemão Walter Kasper, considerado um dos teólogos mais ouvidos. Em recente conferência na Universidade Católica da América, em Washington, ele declarou que “não se aplicam as desgastadas definições de progressista e conservador” ao papa argentino. Francisco “não representa uma posição liberal, mas uma posição radical, no sentido original da palavra, de quem vai à raiz”.
Essa nítida definição do cardeal alemão ajuda também a entender melhor outra iniciativa original que Bergoglio teve no fim de outubro. A notícia não é nova para o público europeu ou americano, alcançado por uma mídia disposta a dar grande atenção ao encontro que o papa teve com os movimentos populares do mundo inteiro. Não aconteceu o mesmo no Brasil, onde a chamada grande mídia permaneceu bastante distraída, descuidando, em particular, da participação na reunião em Roma de um importante brasileiro, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, João Pedro Stedile. Pela primeira vez na história do papado, o Vaticano hospedou e acompanhou esse tipo de encontro, chamado Terra, Casa e Trabalho, que reuniu cem organizações populares do planeta, das associações camponesas aos cocaleiros, dos catadores de lixo aos movimentos cooperativos.
O discurso que o papa Francisco proferiu para os participantes do encontro demonstrou efetivamente todo o radicalismo de suas posições sociais. Surpreenderam muito não só os conceitos expressos, mas também a terminologia. O papa argentino voltou a falar da “cultura do descarte”, que “acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana”. Na sua concepção, a verdadeira soberania no mundo é exercida hoje por “um sistema econômico centrado no deus dinheiro, que tem também necessidade de saquear a natureza para manter o ritmo frenético de consumo que lhe é próprio”. Esse sistema adota a guerra como instrumento regulatório dos conflitos. Uma guerra não do tipo clássico, mas fragmentada e global ao mesmo tempo: “... estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas por etapas. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então fabricam-se e vendem-se armas, e assim, obviamente, salvam-se os balanços das economias que sacrificam o homem aos pés do ídolo dinheiro”.
Diante desse sistema, o papa valoriza com veemência a cultura da solidariedade expressa pelos movimentos populares, que ele incita “a lutar pela dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam se beneficiar dos frutos da terra (...) Não o digo só eu, mas está escrito no Compêndio da doutrina social da Igreja”.
Depois de falar “do escândalo da pobreza, promovendo estratégias de contenção que só tranquilizam e transformam os pobres em seres domesticados e inofensivos”, Francisco toca a questão da alimentação: “Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como uma mercadoria qualquer, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso constitui um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável”.
A todos os excluídos o papa entrega a construção do futuro da humanidade numa lógica de integração, um futuro feito de “terra, casa e trabalho” para todos. Um futuro construído graças a um “protagonismo” que “transcende os procedimentos lógicos da democracia formal”.
Como afirmou Stedile numa entrevista a um jornal italiano, “do encontro com Francisco, que se mostrou mais à esquerda do que muitos de nós, nascem duas iniciativas: formar um espaço de diálogo permanente com o Vaticano e, independentemente da Igreja, mas aproveitando a reunião de Roma, construir no futuro um espaço internacional dos movimentos do mundo, para combater o capital financeiro, os bancos e as grandes multinacionais. Os inimigos do povo são esses. Como diria o papa, este é o Diabo”.
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