“Ritual do Santo Daime deve ser examinado à luz de um direito fundamental”, diz juiz federal
M.Juiz Jair Araújo Facundes |
O juiz federal Jair Araújo Facundes dedicou os últimos dois de seus 43 anos a realizar uma pesquisa para dissertação de mestrado em que aborda aspectos relacionados aos direitos fundamentais a partir do estudo de uma reivindicação concreta do direito à liberdade consubstanciada no caso ayahuasca.
Trata-se do controvertido uso ritual de uma bebida psicoativa, mais conhecida como Santo Daime, que contém uma substância, o alcalóide dimetiltriptamina (DMT), proibida em tratado internacional e na legislação de vários países.
Titular da 3ª Vara da Seção Judiciária do Acre, Jair Facundes examina decisões proferidas no âmbito administrativo e judicial e conclui que permitir ou negar o exercício de uma prática religiosa somente se justifica quando amparada por uma teoria política mais ampla acerca de como os bens, espaços e liberdades escassos devem ser ordenados no interior de uma comunidade política que busca se organizar por princípios que garantam a todos a mesma consideração e o mesmo respeito por parte do governo e da comunidade.
Em certa medida a pesquisa é sobre um processo registrado em 1974, em Rio Branco, envolvendo Leôncio Gomes, dirigente do centro original da doutrina do Daime, que foi intimado pela Polícia Federal para que se abstivesse de fazer uso da bebida psicoativa de origem indígena, feita a partir do cozimento de duas plantas, conhecidas, entre outros nomes, por ayahuasca, yagé, uascar, huni etc. A notificação policial relatava que várias “organizações altamente especializadas e laudos foram elaborados que comprovam, sem margem de dúvidas, a periculosidade de tal xarope”. Qualificava a bebida como droga, e afirmava que seu uso causa mal “não só físico mas à mente”.
Leôncio Gomes moveu uma ação contra o governo em que pedia à Justiça Federal a proteção do que compreendia como seu direito de praticar livremente sua religião, conforme a liberdade de religião assegurada na Constituição. Argumentou se tratar de prática religiosa secular entre os indígenas e que, no meio urbano e arredores, contaria com mais de 50 anos de uso, que se tratava de uma religião popular e que nos dias de grandes festejos compareciam as autoridades locais, como governadores, prefeitos, parlamentares federais e estaduais, pessoas de todas as classes sociais, evidenciando que se tratava de uma religião integrada à paisagem moral e cultural da região, sem registro de malefícios à saúde física ou mental de seus adeptos.
O então juiz federal Ilmar Galvão, que posteriormente se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal, determinou que a PF explicasse as razões da proibição. A PF justificou que a bebida continha substância capaz de causar dependência psíquica. Juntou três laudos divergentes quanto à composição da bebida. A sentença de Ilmar Galvão reconheceu que os laudos eram imprestáveis tanto para demonstrar a composição química da bebida quanto sua periculosidade ou nocividade.
- Não se sabia se alguma das substâncias proibidas se encontrava presente na bebida, mas a proibição foi mantida, com a afirmação de que a ausência de prova da periculosidade não ensejava a conclusão de que o preparo e uso da bebida fossem lícitos – lembra o magistrado.
Existem inúmeros estudos (antropológicos, sociológicos, psicológicos, musicais, farmacológicos, químicos, médicos sob várias perspectivas e em várias idades e estados etc) sobre ayahuasca. Porém, a arena onde as batalhas acerca do reconhecimento da legitimidade de seu uso se deu e se dá é no campo do direito. Apesar dessa circunstância, não havia um estudo jurídico que investigasse as decisões em si mesmas, sua estrutura interna, sua lógica e argumentação. Quando muito havia alguma pesquisa que descrevia as decisões, mas não havia uma crítica sistematizada acerca de seu conteúdo. A pesquisa busca iniciar o debate ao sugerir um referencial a partir do qual o assunto possa ser visto sob um prisma comum, ao afirmar que devem decidir ou propor alguma teoria mais ampla acerca de como as diferenças devem ser tratadas em sociedades complexas.
Jair Araújo Facundes, juiz federal há 13 anos, tem mestrado em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Oúblico (IDP), em Brasília. Ele integrou o Grupo Multidisciplinar de Trabalho da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em 2006, que elaborou a resolução que regulamentou o uso religioso da ayahuasca no país e é membro do Grupo de Trabalho Legislação sobre Drogas, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad/Senad), ligado ao Ministério da Justiça.
A pesquisa fornece elementos capazes de aumentar a qualidade do debate jurídico sobre ayahuasca a policiais federais, delegados, promotores, juízes e agentes públicos com atuação decisiva na questão. Muitos desses profissionais, oriundos de estados fora da Amazônia, se veem obrigados a decidir a cultura local, e o fazem sem maiores elementos e contextualização, adotando pré-concepções e correndo o risco de incorrer em preconceito.
- Num resumo, a pesquisa versa sobre o que é um direito fundamental, seja a liberdade religiosa, seja a liberdade de expressão, seja a igualdade etc. Por incrível que pareça, há várias definições que determinam vereditos diferentes. A pesquisa examina o que é um direito a partir de um caso concreto: a ayahuasca.
Veja os melhores trechos da entrevista exclusiva de Jair Araújo Facundes:
BLOG DA AMAZÔNIA – Do que trata a sua pesquisa?
JAIR FACUNDES - O objeto central da pesquisa é oferecer uma resposta consistente e funcional sobre o que é o direito, os direitos e as liberdades fundamentais. Então adentramos em vários campos, como a teoria do direito, teorias políticas, teorias da interpretação e da decisão judicial, da democracia etc. Para não ficar uma investigação muito ampla e genérica, nos concentramos no exame de um direito fundamental em especial, a liberdade de religião, considerada por muitos teóricos como a “mãe de todas de todas as liberdades”, pois o reconhecimento histórico desta liberdade deu origem a várias outras. E a fim de que a pesquisa não se tornasse muito teórica e enfadonha, o estudo se desenvolveu a partir do exame de uma prática religiosa que tem suas raízes na Amazônia e que é imensamente controvertida, a ayahuasca, permitindo ver como algo tão controvertido é debatido por operadores do direito em vários países, âmbitos e no decorrer dos anos.
Como o uso da ayahuasca se relaciona com o direito?
As várias decisões sobre ayahuasca ao longo de mais de 40 anos, em vários países e sistemas judiciais diferentes, tornam esse assunto singularmente emblemático do que é uma liberdade fundamental ou o que é o direito, e de como o veredito varia segundo o sentido (forte, fraco) que o intérprete lhe atribui. Todas as decisões são equacionadas na forma de um confronto entre a liberdade religiosa e outros interesses – saúde do indivíduo, evitar uso recreativo e abusivo de uma substância, cumprimento de tratado internacional que proíbe tal substância.
Como é no Brasil essa liberdade fundamental em relação à ayahuasca?
Mesmo no interior de um mesmo país, de um mesmo órgão, as opiniões sobre o que implica tal liberdade variam, ora essa liberdade resistindo a certos argumentos e interesses, como proteção da saúde, cumprimento de tratado internacional, ora sucumbindo frente aos mesmos interesses. Se temos dois termos numa equação e um deles se mantém fixo -as características da ayahuasca, sua composição, seus efeitos, a lei proibitiva-, então o diferencial é a variável, ou, no caso, aquilo que entendemos por liberdade religiosa. Em larga medida não haveria maior diferença entre a decisão mais antiga que se tem notícia, envolvendo Leôncio Gomes da Silva, e a mais recente. O veredito depende mais de como o intérprete define o que é um direito do que dos outros interesses confrontados. Podemos comparar um direito ou liberdade fundamental a um escudo, mas esse escudo pode ser imensamente frágil, como papel, sucumbindo a qualquer pretensão em sentido contrário, como em Leôncio, ou gradativamente mais forte e robusto, de madeira, ferro, aço, resistindo a confrontos com outros interesses.
O que isso resulta?
Diante de uma liberdade fundamental, no sentido forte já mencionado, não basta dizer que há lei proibindo dada conduta ou prática. Enquanto expressão da maioria, a lei, por si só, é insuficiente para afastar um direito. Exige-se mais. Bem mais.
Mas a ayahuasca contém DMT, a dimetiltriptamina, substância proscrita em vários países. O que dizer?
Frente a essa noção de liberdade fundamental é insuficiente dizer que a maioria não concorda com a prática religiosa, ou que ayahuasca contém DMT, ou que esta substância tem o potencial de desencadear certos estados mentais alterados. Há de se demonstrar que o exercício desse direito afeta direitos de terceiros, ou que impõe ao restante da comunidade algum custo insuportável ou severo demais. Algumas decisões claramente tomam esse sentido forte de direito, de barreiras das minorias contra a maioria.
Quais os exemplos disso?
A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, proferida em favor da União do Vegetal, a UDV, ou a decisão proferida pelo extinto Conselho Federal de Entorpecentes, em 1987, entre várias outras. Direito fundamental assim configurado deixa de ser discutido no âmbito exclusivamente jurídico e passar a ser discutido no âmbito de uma teoria mais ampla, política e moral. Pressupõe algumas respostas que devem ser dadas antes da leitura da própria Constituição. Criamos uma Constituição para atribuir a cada um o mesmo respeito e consideração? Algum grupo deve ser merecedor de maior respeito e consideração? Se sim, por quê? As pessoas devem ser reconhecidas como detentoras de autonomia ou devem ser tratadas como crianças passíveis de paternal proteção governamental? Que tipo de autonomia uma constituição pressupõe reconhecer nas pessoas? Essas perguntas e respostas são anteriores à leitura da Constituição, e guiarão ou não a interpretação.
O título da pesquisa é “Pluralismo, Direito e Ayahuasca: Autodeterminação e legitimação do poder no mundo desencantado”. Por que “mundo desencantado”?
Utilizei uma ideia de Max Weber, pensador alemão. O modelo de sociedade que nos antecedeu ficou conhecida como tradicional. Sua estrutura e organização se baseava na tradição, que explicava as posições de poder, o sentido da própria vida, a distribuição dos bens e recursos escassos na sociedade, e remetia à ideia de que se vivia uma realidade divina. Se alguém adoecia, era pobre, nobre ou príncipe, se havia fome, tudo era justificado à luz de um mito; o mundo era encantado, explicado através de um mito, uma tradição religiosa. Com a chegada do capitalismo, do iluminismo, o mundo desencantou-se. Já não se aceitava que alguém devia governar apenas por ser filho do rei, ou por ser nobre; já não se aceitava que alguém fosse pobre ou rico apenas em razão do berço. O catolicismo deixa de ser a única opção religiosa, o absolutismo e o “direito divino” são questionados por ideias como democracia, república, governo popular e mesmo anarquia etc.?
Como é na sociedade moderna?
Na sociedade moderna o poder deixa de ter origem divina e passa a ter gradativamente origem mundana, humana. A ideia de igualdade se expande e exige que as posições de poder sejam justificadas por alguma ideia como autogoverno ou democracia. Neste mundo desencantado não se aceita o argumento da autoridade religiosa ou outro dogmático, mas caminha-se para a autoridade do argumento, fundado em razões e em princípios que possam ser compartilhados.
Como o caso de Leôncio se relaciona com isso?
O mundo pode ser encantado não só no sentido religioso, mas sempre que o enxergarmos como se dotado de um sentido indiscutível e “natural”, ou dogmático, mas a sociedade é uma construção bem humana. Leôncio questiona e se insurge contra uma realidade que queria se impor a ele como encantada, imune a qualquer justificação, acima de qualquer questionamento. Nesse sentido Leôncio, aqui representando vários outros líderes, como Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Matos, Gabriel Costa, os seguidores destes, é exemplo de resistência política, moral e cultural.
O que diz o processo?
Lendo o processo, a petição inicial, em particular, percebe-se que Leôncio não aceita a validade da lei em si mesma, da autoridade por si mesma. Ele buscava, na forma de se conduzir e de argumentar, alguma razão que tivesse apelo para ele, que o convencesse que seu direito deveria ser restringido ou negado, que era uma questão de respeito e igualdade que o Governo, representado pela Polícia Federal ou pelo juiz, mostrasse a fonte da legitimidade de sua ordem, que esta ordem fosse aceitável à luz da legitimidade. Isso porque Leôncio questionou o fundamento da lei.
A ayahuasca ainda é uma prática alvo de preconceito?
Sim, demais. Imagine isso em pleno regime militar, de exceção, quando Leôncio e vários outros se insurgiram contra uma decisão da instituição que representava o regime militar, a Polícia Federal, com toda sua estrutura técnica e seu prestígio.
Diria que naquela época se exigia certa coragem para praticar essa religião?
Muita. Hoje não podemos aquilatar o que foi o regime militar. Ministros do STF, senadores, governadores e prefeitos perdiam o mandato a partir de informações prestadas pela Polícia Federal, entre outros órgãos, acerca de quem era “subversivo”. Não era algo prudente se insurgir contra suas decisões. Havia clima de medo. Se um ministro do STF perdia o cargo sem processo ou defesa, por uma mera “canetada”, deputados perdiam mandatos, pessoas eram presas sem explicação, exigia-se redobrada coragem para assumir certas posturas, mesmo que tais posturas não fossem explicitamente político-ideológicas. Mesmo hoje há pessoas que tem receio de assumir tal prática religiosa, por exercerem posições de destaque na sociedade, com medo de integrarem uma religião de pobres, de seringueiros, índios, enfim, uma religião marginal.
Há, na sua pesquisa, uma parte em que é analisada a questão num país hipotético que tenha constituição ou carta de direitos. Por que?
Abordo uma hipótese no qual levo às últimas consequências o argumento central da pesquisa: que os direitos fundamentais são melhor compreendidos e extraem seu significado no âmbito mais profundo de uma teoria da justiça ou sobre moralidade política, sobre quais princípios devem reger a vida em comunidade, que direitos temos contra o Estado, se temos algum, e contra a maioria da sociedade, sobre como devem se relacionar maioria e grupos minoritários. Confesso desconhecer se há algum país em tal situação. Mesmo a Inglaterra tem carta de Direitos, e ali nasceu a própria ideia de uma carta de direitos, com a Magna Carta, e de controle de poder, com a Revolução Gloriosa. As piores tiranias publicam constituições para conferir um verniz de legitimidade ao exercício do poder. E mesmo constituições aprovadas por assembleias populares não garantem legitimidade. A Constituição brasileira de 1934, aprovada por assembleia constituinte regularmente eleita, determinava a educação eugênica, por exemplo, prestigiando brancos e ricos.
Como deveria agir um juiz num país sem liberdades fundamentais consagradas em algum texto positivado?
A resposta é a mesma: essa sociedade quer, almeja ou declara se organizar atribuindo a cada o mesmo respeito e mesma consideração? Todos seus cidadãos detêm o mesmo status? Se sim, então os direitos fundamentais surgem desse autorreconhecimento de que não é possível se sustentar nenhum direito que não possa ser compartilhado pelo outro, porque os direitos, as liberdades fundamentais surgem quando nos percebemos no mundo com o outro, e aí surge a dimensão de moralidade política, pela qual eu sou obrigado a reconhecer no outro aquilo que quero para mim mesmo. E aí a Constituição já não é tanto constitutiva, mas declarativa de um direito moral que aspira concretização como condição de legitimidade da Constituição em si mesma e para o exercício legítimo do poder: a igualdade, porque ninguém é capaz de provar para os outros que é merecedor de algum valor a mais, ou que seja superior ao outro.
A ayahuasca…
Veja que não se afirma que há um direito moral a usar ayahuasca, mas que há um direito moral à liberdade religiosa que goza de supremacia e prioridade. Permitir ou proibir qualquer religião, não só ayahuasca, depende então de o governo ser capaz de demonstrar que uma prática religiosa agride direitos de terceiros, impõe severo ônus à sociedade ou outra razão passível de aceitação entre pessoas dotadas de autonomia.
Há quem sustente que, no caso brasileiro, a lei 11.343/06, ao autorizar o uso de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso, como a ayhauasca, violaria a Convenção de Viena de 1971. Alega-se que o tratado internacional, subscrito pelo Brasil, permite o uso ritual, desde que o país tenha feito reserva quanto à substância. Como o Brasil não fez tal reserva, então, mesmo a lei atual seria “ilegal”. Como interpreta isso?
Por primeiro, imagine a situação em 1971. Representantes do governo brasileiro, resolvem assinar um tratado pelo qual o Brasil assumirá a obrigação de proibir várias substâncias, e estão cientes, os representantes, de que poderão excetuar da proibição as substâncias nativas utilizadas em ritual religioso. Vamos submeter essa situação a um exame severo e bem estrito, sem atentar para outros detalhes bem mais importantes. Pois bem, esses representantes, em 1971, sabiam que várias e várias substâncias nativas eram utilizadas em rituais? Temos algum dado para presumir que eles tinham essa informação? Temos, em sentido contrário, isto é, somente após 1971 o governo brasileiro, através da Polícia Federal, tomou ciência de que grupos faziam uso de substâncias psicoativas em rituais religiosos. Agora temos duas opções: podemos entender que aquele momento para apresentar reservas era único, e que se os representantes dos países não sabiam das plantas utilizadas em rituais religiosos, azar, que se prenda e reprima quem assim faz uso. Mas podemos entender que a Convenção não proibia a exceção na hipótese de o governo somente anos depois descobrir que havia uso de substâncias psicoativas em rituais religiosos.
Além disso, os grupos que faziam uso ritual de substâncias psicoativas não tinham representação política, ou eram minorias sem voz e sem acesso aos canais de deliberação política, como índios, caboclos, analfabetos, seringueiros, agricultores.
Se eles tinham voz ativa, se tinham representantes, é razoável e plausível que os consideremos representados, e podemos impor a eles todas as decisões tomadas pelos representantes brasileiros. Mas talvez a outra opção se mostre mais plausível. Os representantes políticos e diplomáticos não os representavam, Nessa hipótese, aquela decisão governamental não os vinculava, porque eles não foram ouvidos. Mas ultrapassemos essa dificuldade. Aceitemos por hipótese, que em 1971, em pleno regime militar, o governo brasileiro representava não os interesses de uma classe bem definida no extrato social brasileiro, que podemos sem receio de errar acreditar que o governo era representativo e se preocupava com todos os grupos da realidade cultural brasileira, que se esforçava para ser imparcial e ouvir todos os reclamos e interesses dos vários segmentos sociais. Não vale rir, é apenas uma hipótese.
Como os demais países interpretaram a cláusula?
Peguemos o país que não só assinou mas promoveu, estimulou essa convenção, os Estados Unidos. Ele não apresentou reservas para o peyote, cacto com propriedades psicoativas utilizado em rituais em vários estados americanos, mas, apesar de não ter feita a reserva, não proibiu essa prática religiosa, nem saiu prendendo seus nativos. Se os Estados Unidos, um dos principais proponentes da Convenção, compreendia e compreende que a reserva não era condição para o uso religioso, por que o Brasil deveria optar por uma interpretação mais rigorosa? Que razões teríamos para sustentar essa interpretação diferenciada? Observe que os Estados Unidos aplicaram o mesmo raciocínio, explicitamente, para a ayahuasca, proclamando que a ausência de reserva não era, por si só, suficiente para excluir a permissão de uso ritual. Agora temos duas interpretações possíveis: uma interpretação é formal; uma outra é substancial, considera que na essência, na substância, a comunidade internacional aprovou o uso religioso, e que a formalidade não deve ser obstáculo ao reconhecimento daquele direito substancial.
O STF já decidiu o assunto?
Diretamente não, mas extrai-se de sua jurisprudência duas orientações importantes. A primeira é que o STF tem decidido que os tratados internacionais são incorporados ao ordenamento brasileiro com o status de lei, de modo que uma lei poderia revogar, no âmbito interno, um tratado, exceto se o tratado verse sobre direitos fundamentais. O tratado continua em vigor até ser denunciado, que é o meio adequado para que percam a validade no âmbito internacional, mas internamente perderia sua eficácia. Há precedentes nesse sentido. Há também na ADPF 187, expressamente uma referência de que a reserva não seria condição para reconhecimento do uso ritual, no voto do ministro Celso de Mello. Porém, Altino, debater esse tema nesses termos escamoteia um aspecto essencial, e acaba revelando mais das intenções de quem sustenta esse tipo de discussão.
Como assim?
Não se pode debater liberdade sem previamente decidir o que é uma liberdade, qual seu sentido, função, força. Somente depois de definirmos o que é uma liberdade, podemos confrontá-la com leis, tratados, portarias, resoluções, recados, instruções normativas, memorandos, bilhetes. Veja como ao longo da entrevista tenho enfatizado esse aspecto, e quando tocamos no assunto “Convenção de Viena” a discussão quis tomar outro rumo, focando detalhes, formalidades. Essa é uma discussão lateral. A discussão de fundo é sabermos o que é uma liberdade fundamental, e ao que essa liberdade é capaz de resistir, que tipos de argumentos podem afastá-la. É bem sintomático que o artigo da Convenção de Viena, que permite o uso religioso, só veio para o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas, o Conad, quando as entidades foram chamadas para participação da elaboração das normas. Até então a Convenção era lida só na parte da proibição. Pulava-se, suprimia-se o artigo que tratava da liberdade. Não interessava à então Divisão de Medicamentos, à Anvisa, à Polícia Federal. A Resolução 1/2010, do Conad, refere então essa Convenção e então se seguiu uma discussão secundária: “ok, o tratado internacional permite o uso ritual, mas o Brasil não fez reservas quanto ao DMT”, e com isso se foge do debate central: o que é uma liberdade? Na Suprema Corte dos Estados Unidos e no Supremo Tribunal Federal no Brasil, entre outros, tem-se afirmado, em vários casos, que o tratado internacional deve ser interpretado em harmonia com as liberdades reconhecidas pela Constituição. Não o contrário. Não devemos interpretar a Constituição com base no tratado: é o contrário, sob pena de “a carroça puxar o boi”.
Sua pesquisa descreve e examina o conjunto das decisões proferidas pelo Confen e Conad. Que conclusões podemos extrair das deliberações?
Várias, e sob múltiplos aspectos. Na pesquisa enfatizei apenas o aspecto jurídico e alguns outros correlatos imediatamente. Mas caberia um trabalho autônomo. São várias decisões que vão de 1985, proferida pela Dimed, órgão integrante do Ministério da Saúde, até 2010, com a Resolução 1/2010 do Conad. O Confen, mais tarde substituído pelo Conad, é um órgão que mudou ao longo do tempo tanto na sua composição, gradativamente aumentou a representação da sociedade civil na sua composição, na sua localização topográfica ou institucional – ora integrava a Presidência da República, ora na Secretaria ora o Ministério da Justiça.
Mudanças que espelharam as mudanças no quadro político brasileiro?
Sim. Quando se examina suas decisões ao longo do tempo, verifica-se algumas constantes. Houve decisões originadas de relator e houve decisões originadas de grupos de trabalho integrados por profissionais de várias áreas. As decisões restritivas provieram de relatores individualizados, em geral, ligados à área médica, quando se enfatizava a razão médica, farmacológica, enquanto as decisões multidisciplinares reconheciam a liberdade, enfatizando o uso concreto e socialmente localizado da bebida, com argumentos não só farmacológicos, mas provenientes das ciências humanas – antropologia, política, sociologia, filosofia etc.
Ao longo de suas decisões o extinto Confen ou Conad não proibiram a ayahuasca.
Não e no máximo impôs, durante algum tempo, algumas restrições. A decisão de 1985, a primeira decisão governamental brasileira sobre o tema, foi proferida pela Dimed e se revestiu de várias falhas tanto jurídicas quanto técnicas, quando afirmou, por exemplo, que o DMT era presente no cipó, quando é encontrada na folha utilizada no preparo da bebida. Há inúmeros outros aspectos, mas quero destacar um para não me alongar. A análise das várias decisões do órgão é, em seu conjunto, um reconhecimento às entidades pioneiras e tradicionais que fazem uso de ayahuasca.
A primeira decisão conclusiva do Confen é de 1987?
Sim, mas em 1986 houve uma decisão provisória baseada em estudos de campo, com visitas às principais entidades. Esse contato permitiu aos pesquisadores constatar que os efeitos do DMT, abstratamente considerados, são diferentes dos efeitos da ayahuasca no uso ritual. Com base no que viram, pesquisaram, fotografaram, decidiram que o uso ritual devia ser liberado integralmente.
Mas os estudos detectaram, já naquela época, outro uso, digamos não tradicional, que se distanciava do modelo compreendido e aceito como uso ritual da ayahuasca.
Esse outro uso era uma espécie de desdobramento do uso tradicional, e incorporava outros elementos e, em especial, maconha. Na época, as entidades que faziam esse outro uso, comprometeram-se a interrompê-lo. Ocorre que esse outro uso, não-tradicional, continuou e expandiu-se ao abrigo genérico daquela permissão para o uso ritual tradicional. As decisões supervenientes do Confen/Conad são respostas a esse uso alternativo. Com o tempo aquele uso alternativo passou a ser confundido com o uso tradicional, e as decisões, embora visassem o uso alternativo, faziam uso de uma linguagem que confundia. Publicava-se uma decisão e dali algum tempo o Confen/Conad recebia várias denúncias, algumas graves, envolvendo comércio, adolescente viciada em maconha com a mãe pedindo providência para resgatar sua filha, mortes etc. Mas quando se examina as decisões, suas razões, seus considerandos, seu histórico, percebe-se que esses fatos posteriores não disseram respeito às entidades tradicionais. Curiosamente, quando se publicava na imprensa escândalos, quem veio a público, quem comparecia aos órgãos públicos foram as entidades tradicionais. A mídia, e por vezes até o poder público, não fazia nem faz essas distinções.
O ministro Gilmar Mendes participou da sua banca de exame, aprovando e recomendando a publicação da pesquisa. Como isso aconteceu?
O ministro Gilmar Mendes é mais conhecido como um integrante do Supremo Tribunal Federal, e autor de várias contribuições jurisprudenciais importantes. Mas o ministro é, de longa data, professor universitário e um pesquisador com enorme produção teórica e acadêmica, um dos mais influentes constitucionalistas brasileiros. Foi meu professor no mestrado. É autor de várias obras sobre interpretação constitucional, dogmática constitucional e sobre direitos fundamentais, algumas das quais indispensáveis para quem quer conhecer o direito constitucional brasileiro. Nessa condição de acadêmico, o professor que foi meu orientador, Álvaro Ciarlini, enviou para ele a pesquisa, e ele considerou a possibilidade de participar da banca, pelo ineditismo do assunto. Para mim, foi uma enorme honra e uma grande oportunidade, como um acreano, nascido na zoa rural comendo pão de milho com leite de castanha, defender uma dissertação sobre teoria do direito através de um tema tipicamente acreano, perante uma banca formada por pessoas tão eruditas. Não sonhava tanto.
Titular da 3ª Vara da Seção Judiciária do Acre, Jair Facundes examina decisões proferidas no âmbito administrativo e judicial e conclui que permitir ou negar o exercício de uma prática religiosa somente se justifica quando amparada por uma teoria política mais ampla acerca de como os bens, espaços e liberdades escassos devem ser ordenados no interior de uma comunidade política que busca se organizar por princípios que garantam a todos a mesma consideração e o mesmo respeito por parte do governo e da comunidade.
Em certa medida a pesquisa é sobre um processo registrado em 1974, em Rio Branco, envolvendo Leôncio Gomes, dirigente do centro original da doutrina do Daime, que foi intimado pela Polícia Federal para que se abstivesse de fazer uso da bebida psicoativa de origem indígena, feita a partir do cozimento de duas plantas, conhecidas, entre outros nomes, por ayahuasca, yagé, uascar, huni etc. A notificação policial relatava que várias “organizações altamente especializadas e laudos foram elaborados que comprovam, sem margem de dúvidas, a periculosidade de tal xarope”. Qualificava a bebida como droga, e afirmava que seu uso causa mal “não só físico mas à mente”.
Leôncio Gomes moveu uma ação contra o governo em que pedia à Justiça Federal a proteção do que compreendia como seu direito de praticar livremente sua religião, conforme a liberdade de religião assegurada na Constituição. Argumentou se tratar de prática religiosa secular entre os indígenas e que, no meio urbano e arredores, contaria com mais de 50 anos de uso, que se tratava de uma religião popular e que nos dias de grandes festejos compareciam as autoridades locais, como governadores, prefeitos, parlamentares federais e estaduais, pessoas de todas as classes sociais, evidenciando que se tratava de uma religião integrada à paisagem moral e cultural da região, sem registro de malefícios à saúde física ou mental de seus adeptos.
O então juiz federal Ilmar Galvão, que posteriormente se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal, determinou que a PF explicasse as razões da proibição. A PF justificou que a bebida continha substância capaz de causar dependência psíquica. Juntou três laudos divergentes quanto à composição da bebida. A sentença de Ilmar Galvão reconheceu que os laudos eram imprestáveis tanto para demonstrar a composição química da bebida quanto sua periculosidade ou nocividade.
- Não se sabia se alguma das substâncias proibidas se encontrava presente na bebida, mas a proibição foi mantida, com a afirmação de que a ausência de prova da periculosidade não ensejava a conclusão de que o preparo e uso da bebida fossem lícitos – lembra o magistrado.
Existem inúmeros estudos (antropológicos, sociológicos, psicológicos, musicais, farmacológicos, químicos, médicos sob várias perspectivas e em várias idades e estados etc) sobre ayahuasca. Porém, a arena onde as batalhas acerca do reconhecimento da legitimidade de seu uso se deu e se dá é no campo do direito. Apesar dessa circunstância, não havia um estudo jurídico que investigasse as decisões em si mesmas, sua estrutura interna, sua lógica e argumentação. Quando muito havia alguma pesquisa que descrevia as decisões, mas não havia uma crítica sistematizada acerca de seu conteúdo. A pesquisa busca iniciar o debate ao sugerir um referencial a partir do qual o assunto possa ser visto sob um prisma comum, ao afirmar que devem decidir ou propor alguma teoria mais ampla acerca de como as diferenças devem ser tratadas em sociedades complexas.
Jair Araújo Facundes, juiz federal há 13 anos, tem mestrado em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Oúblico (IDP), em Brasília. Ele integrou o Grupo Multidisciplinar de Trabalho da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em 2006, que elaborou a resolução que regulamentou o uso religioso da ayahuasca no país e é membro do Grupo de Trabalho Legislação sobre Drogas, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad/Senad), ligado ao Ministério da Justiça.
A pesquisa fornece elementos capazes de aumentar a qualidade do debate jurídico sobre ayahuasca a policiais federais, delegados, promotores, juízes e agentes públicos com atuação decisiva na questão. Muitos desses profissionais, oriundos de estados fora da Amazônia, se veem obrigados a decidir a cultura local, e o fazem sem maiores elementos e contextualização, adotando pré-concepções e correndo o risco de incorrer em preconceito.
- Num resumo, a pesquisa versa sobre o que é um direito fundamental, seja a liberdade religiosa, seja a liberdade de expressão, seja a igualdade etc. Por incrível que pareça, há várias definições que determinam vereditos diferentes. A pesquisa examina o que é um direito a partir de um caso concreto: a ayahuasca.
Veja os melhores trechos da entrevista exclusiva de Jair Araújo Facundes:
BLOG DA AMAZÔNIA – Do que trata a sua pesquisa?
JAIR FACUNDES - O objeto central da pesquisa é oferecer uma resposta consistente e funcional sobre o que é o direito, os direitos e as liberdades fundamentais. Então adentramos em vários campos, como a teoria do direito, teorias políticas, teorias da interpretação e da decisão judicial, da democracia etc. Para não ficar uma investigação muito ampla e genérica, nos concentramos no exame de um direito fundamental em especial, a liberdade de religião, considerada por muitos teóricos como a “mãe de todas de todas as liberdades”, pois o reconhecimento histórico desta liberdade deu origem a várias outras. E a fim de que a pesquisa não se tornasse muito teórica e enfadonha, o estudo se desenvolveu a partir do exame de uma prática religiosa que tem suas raízes na Amazônia e que é imensamente controvertida, a ayahuasca, permitindo ver como algo tão controvertido é debatido por operadores do direito em vários países, âmbitos e no decorrer dos anos.
Como o uso da ayahuasca se relaciona com o direito?
As várias decisões sobre ayahuasca ao longo de mais de 40 anos, em vários países e sistemas judiciais diferentes, tornam esse assunto singularmente emblemático do que é uma liberdade fundamental ou o que é o direito, e de como o veredito varia segundo o sentido (forte, fraco) que o intérprete lhe atribui. Todas as decisões são equacionadas na forma de um confronto entre a liberdade religiosa e outros interesses – saúde do indivíduo, evitar uso recreativo e abusivo de uma substância, cumprimento de tratado internacional que proíbe tal substância.
Como é no Brasil essa liberdade fundamental em relação à ayahuasca?
Mesmo no interior de um mesmo país, de um mesmo órgão, as opiniões sobre o que implica tal liberdade variam, ora essa liberdade resistindo a certos argumentos e interesses, como proteção da saúde, cumprimento de tratado internacional, ora sucumbindo frente aos mesmos interesses. Se temos dois termos numa equação e um deles se mantém fixo -as características da ayahuasca, sua composição, seus efeitos, a lei proibitiva-, então o diferencial é a variável, ou, no caso, aquilo que entendemos por liberdade religiosa. Em larga medida não haveria maior diferença entre a decisão mais antiga que se tem notícia, envolvendo Leôncio Gomes da Silva, e a mais recente. O veredito depende mais de como o intérprete define o que é um direito do que dos outros interesses confrontados. Podemos comparar um direito ou liberdade fundamental a um escudo, mas esse escudo pode ser imensamente frágil, como papel, sucumbindo a qualquer pretensão em sentido contrário, como em Leôncio, ou gradativamente mais forte e robusto, de madeira, ferro, aço, resistindo a confrontos com outros interesses.
O que isso resulta?
Diante de uma liberdade fundamental, no sentido forte já mencionado, não basta dizer que há lei proibindo dada conduta ou prática. Enquanto expressão da maioria, a lei, por si só, é insuficiente para afastar um direito. Exige-se mais. Bem mais.
Mas a ayahuasca contém DMT, a dimetiltriptamina, substância proscrita em vários países. O que dizer?
Frente a essa noção de liberdade fundamental é insuficiente dizer que a maioria não concorda com a prática religiosa, ou que ayahuasca contém DMT, ou que esta substância tem o potencial de desencadear certos estados mentais alterados. Há de se demonstrar que o exercício desse direito afeta direitos de terceiros, ou que impõe ao restante da comunidade algum custo insuportável ou severo demais. Algumas decisões claramente tomam esse sentido forte de direito, de barreiras das minorias contra a maioria.
Quais os exemplos disso?
A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, proferida em favor da União do Vegetal, a UDV, ou a decisão proferida pelo extinto Conselho Federal de Entorpecentes, em 1987, entre várias outras. Direito fundamental assim configurado deixa de ser discutido no âmbito exclusivamente jurídico e passar a ser discutido no âmbito de uma teoria mais ampla, política e moral. Pressupõe algumas respostas que devem ser dadas antes da leitura da própria Constituição. Criamos uma Constituição para atribuir a cada um o mesmo respeito e consideração? Algum grupo deve ser merecedor de maior respeito e consideração? Se sim, por quê? As pessoas devem ser reconhecidas como detentoras de autonomia ou devem ser tratadas como crianças passíveis de paternal proteção governamental? Que tipo de autonomia uma constituição pressupõe reconhecer nas pessoas? Essas perguntas e respostas são anteriores à leitura da Constituição, e guiarão ou não a interpretação.
O título da pesquisa é “Pluralismo, Direito e Ayahuasca: Autodeterminação e legitimação do poder no mundo desencantado”. Por que “mundo desencantado”?
Utilizei uma ideia de Max Weber, pensador alemão. O modelo de sociedade que nos antecedeu ficou conhecida como tradicional. Sua estrutura e organização se baseava na tradição, que explicava as posições de poder, o sentido da própria vida, a distribuição dos bens e recursos escassos na sociedade, e remetia à ideia de que se vivia uma realidade divina. Se alguém adoecia, era pobre, nobre ou príncipe, se havia fome, tudo era justificado à luz de um mito; o mundo era encantado, explicado através de um mito, uma tradição religiosa. Com a chegada do capitalismo, do iluminismo, o mundo desencantou-se. Já não se aceitava que alguém devia governar apenas por ser filho do rei, ou por ser nobre; já não se aceitava que alguém fosse pobre ou rico apenas em razão do berço. O catolicismo deixa de ser a única opção religiosa, o absolutismo e o “direito divino” são questionados por ideias como democracia, república, governo popular e mesmo anarquia etc.?
Como é na sociedade moderna?
Na sociedade moderna o poder deixa de ter origem divina e passa a ter gradativamente origem mundana, humana. A ideia de igualdade se expande e exige que as posições de poder sejam justificadas por alguma ideia como autogoverno ou democracia. Neste mundo desencantado não se aceita o argumento da autoridade religiosa ou outro dogmático, mas caminha-se para a autoridade do argumento, fundado em razões e em princípios que possam ser compartilhados.
Como o caso de Leôncio se relaciona com isso?
O mundo pode ser encantado não só no sentido religioso, mas sempre que o enxergarmos como se dotado de um sentido indiscutível e “natural”, ou dogmático, mas a sociedade é uma construção bem humana. Leôncio questiona e se insurge contra uma realidade que queria se impor a ele como encantada, imune a qualquer justificação, acima de qualquer questionamento. Nesse sentido Leôncio, aqui representando vários outros líderes, como Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Matos, Gabriel Costa, os seguidores destes, é exemplo de resistência política, moral e cultural.
O que diz o processo?
Lendo o processo, a petição inicial, em particular, percebe-se que Leôncio não aceita a validade da lei em si mesma, da autoridade por si mesma. Ele buscava, na forma de se conduzir e de argumentar, alguma razão que tivesse apelo para ele, que o convencesse que seu direito deveria ser restringido ou negado, que era uma questão de respeito e igualdade que o Governo, representado pela Polícia Federal ou pelo juiz, mostrasse a fonte da legitimidade de sua ordem, que esta ordem fosse aceitável à luz da legitimidade. Isso porque Leôncio questionou o fundamento da lei.
A ayahuasca ainda é uma prática alvo de preconceito?
Sim, demais. Imagine isso em pleno regime militar, de exceção, quando Leôncio e vários outros se insurgiram contra uma decisão da instituição que representava o regime militar, a Polícia Federal, com toda sua estrutura técnica e seu prestígio.
Diria que naquela época se exigia certa coragem para praticar essa religião?
Muita. Hoje não podemos aquilatar o que foi o regime militar. Ministros do STF, senadores, governadores e prefeitos perdiam o mandato a partir de informações prestadas pela Polícia Federal, entre outros órgãos, acerca de quem era “subversivo”. Não era algo prudente se insurgir contra suas decisões. Havia clima de medo. Se um ministro do STF perdia o cargo sem processo ou defesa, por uma mera “canetada”, deputados perdiam mandatos, pessoas eram presas sem explicação, exigia-se redobrada coragem para assumir certas posturas, mesmo que tais posturas não fossem explicitamente político-ideológicas. Mesmo hoje há pessoas que tem receio de assumir tal prática religiosa, por exercerem posições de destaque na sociedade, com medo de integrarem uma religião de pobres, de seringueiros, índios, enfim, uma religião marginal.
Há, na sua pesquisa, uma parte em que é analisada a questão num país hipotético que tenha constituição ou carta de direitos. Por que?
Abordo uma hipótese no qual levo às últimas consequências o argumento central da pesquisa: que os direitos fundamentais são melhor compreendidos e extraem seu significado no âmbito mais profundo de uma teoria da justiça ou sobre moralidade política, sobre quais princípios devem reger a vida em comunidade, que direitos temos contra o Estado, se temos algum, e contra a maioria da sociedade, sobre como devem se relacionar maioria e grupos minoritários. Confesso desconhecer se há algum país em tal situação. Mesmo a Inglaterra tem carta de Direitos, e ali nasceu a própria ideia de uma carta de direitos, com a Magna Carta, e de controle de poder, com a Revolução Gloriosa. As piores tiranias publicam constituições para conferir um verniz de legitimidade ao exercício do poder. E mesmo constituições aprovadas por assembleias populares não garantem legitimidade. A Constituição brasileira de 1934, aprovada por assembleia constituinte regularmente eleita, determinava a educação eugênica, por exemplo, prestigiando brancos e ricos.
Como deveria agir um juiz num país sem liberdades fundamentais consagradas em algum texto positivado?
A resposta é a mesma: essa sociedade quer, almeja ou declara se organizar atribuindo a cada o mesmo respeito e mesma consideração? Todos seus cidadãos detêm o mesmo status? Se sim, então os direitos fundamentais surgem desse autorreconhecimento de que não é possível se sustentar nenhum direito que não possa ser compartilhado pelo outro, porque os direitos, as liberdades fundamentais surgem quando nos percebemos no mundo com o outro, e aí surge a dimensão de moralidade política, pela qual eu sou obrigado a reconhecer no outro aquilo que quero para mim mesmo. E aí a Constituição já não é tanto constitutiva, mas declarativa de um direito moral que aspira concretização como condição de legitimidade da Constituição em si mesma e para o exercício legítimo do poder: a igualdade, porque ninguém é capaz de provar para os outros que é merecedor de algum valor a mais, ou que seja superior ao outro.
A ayahuasca…
Veja que não se afirma que há um direito moral a usar ayahuasca, mas que há um direito moral à liberdade religiosa que goza de supremacia e prioridade. Permitir ou proibir qualquer religião, não só ayahuasca, depende então de o governo ser capaz de demonstrar que uma prática religiosa agride direitos de terceiros, impõe severo ônus à sociedade ou outra razão passível de aceitação entre pessoas dotadas de autonomia.
Há quem sustente que, no caso brasileiro, a lei 11.343/06, ao autorizar o uso de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso, como a ayhauasca, violaria a Convenção de Viena de 1971. Alega-se que o tratado internacional, subscrito pelo Brasil, permite o uso ritual, desde que o país tenha feito reserva quanto à substância. Como o Brasil não fez tal reserva, então, mesmo a lei atual seria “ilegal”. Como interpreta isso?
Por primeiro, imagine a situação em 1971. Representantes do governo brasileiro, resolvem assinar um tratado pelo qual o Brasil assumirá a obrigação de proibir várias substâncias, e estão cientes, os representantes, de que poderão excetuar da proibição as substâncias nativas utilizadas em ritual religioso. Vamos submeter essa situação a um exame severo e bem estrito, sem atentar para outros detalhes bem mais importantes. Pois bem, esses representantes, em 1971, sabiam que várias e várias substâncias nativas eram utilizadas em rituais? Temos algum dado para presumir que eles tinham essa informação? Temos, em sentido contrário, isto é, somente após 1971 o governo brasileiro, através da Polícia Federal, tomou ciência de que grupos faziam uso de substâncias psicoativas em rituais religiosos. Agora temos duas opções: podemos entender que aquele momento para apresentar reservas era único, e que se os representantes dos países não sabiam das plantas utilizadas em rituais religiosos, azar, que se prenda e reprima quem assim faz uso. Mas podemos entender que a Convenção não proibia a exceção na hipótese de o governo somente anos depois descobrir que havia uso de substâncias psicoativas em rituais religiosos.
Além disso, os grupos que faziam uso ritual de substâncias psicoativas não tinham representação política, ou eram minorias sem voz e sem acesso aos canais de deliberação política, como índios, caboclos, analfabetos, seringueiros, agricultores.
Se eles tinham voz ativa, se tinham representantes, é razoável e plausível que os consideremos representados, e podemos impor a eles todas as decisões tomadas pelos representantes brasileiros. Mas talvez a outra opção se mostre mais plausível. Os representantes políticos e diplomáticos não os representavam, Nessa hipótese, aquela decisão governamental não os vinculava, porque eles não foram ouvidos. Mas ultrapassemos essa dificuldade. Aceitemos por hipótese, que em 1971, em pleno regime militar, o governo brasileiro representava não os interesses de uma classe bem definida no extrato social brasileiro, que podemos sem receio de errar acreditar que o governo era representativo e se preocupava com todos os grupos da realidade cultural brasileira, que se esforçava para ser imparcial e ouvir todos os reclamos e interesses dos vários segmentos sociais. Não vale rir, é apenas uma hipótese.
Como os demais países interpretaram a cláusula?
Peguemos o país que não só assinou mas promoveu, estimulou essa convenção, os Estados Unidos. Ele não apresentou reservas para o peyote, cacto com propriedades psicoativas utilizado em rituais em vários estados americanos, mas, apesar de não ter feita a reserva, não proibiu essa prática religiosa, nem saiu prendendo seus nativos. Se os Estados Unidos, um dos principais proponentes da Convenção, compreendia e compreende que a reserva não era condição para o uso religioso, por que o Brasil deveria optar por uma interpretação mais rigorosa? Que razões teríamos para sustentar essa interpretação diferenciada? Observe que os Estados Unidos aplicaram o mesmo raciocínio, explicitamente, para a ayahuasca, proclamando que a ausência de reserva não era, por si só, suficiente para excluir a permissão de uso ritual. Agora temos duas interpretações possíveis: uma interpretação é formal; uma outra é substancial, considera que na essência, na substância, a comunidade internacional aprovou o uso religioso, e que a formalidade não deve ser obstáculo ao reconhecimento daquele direito substancial.
O STF já decidiu o assunto?
Diretamente não, mas extrai-se de sua jurisprudência duas orientações importantes. A primeira é que o STF tem decidido que os tratados internacionais são incorporados ao ordenamento brasileiro com o status de lei, de modo que uma lei poderia revogar, no âmbito interno, um tratado, exceto se o tratado verse sobre direitos fundamentais. O tratado continua em vigor até ser denunciado, que é o meio adequado para que percam a validade no âmbito internacional, mas internamente perderia sua eficácia. Há precedentes nesse sentido. Há também na ADPF 187, expressamente uma referência de que a reserva não seria condição para reconhecimento do uso ritual, no voto do ministro Celso de Mello. Porém, Altino, debater esse tema nesses termos escamoteia um aspecto essencial, e acaba revelando mais das intenções de quem sustenta esse tipo de discussão.
Como assim?
Não se pode debater liberdade sem previamente decidir o que é uma liberdade, qual seu sentido, função, força. Somente depois de definirmos o que é uma liberdade, podemos confrontá-la com leis, tratados, portarias, resoluções, recados, instruções normativas, memorandos, bilhetes. Veja como ao longo da entrevista tenho enfatizado esse aspecto, e quando tocamos no assunto “Convenção de Viena” a discussão quis tomar outro rumo, focando detalhes, formalidades. Essa é uma discussão lateral. A discussão de fundo é sabermos o que é uma liberdade fundamental, e ao que essa liberdade é capaz de resistir, que tipos de argumentos podem afastá-la. É bem sintomático que o artigo da Convenção de Viena, que permite o uso religioso, só veio para o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas, o Conad, quando as entidades foram chamadas para participação da elaboração das normas. Até então a Convenção era lida só na parte da proibição. Pulava-se, suprimia-se o artigo que tratava da liberdade. Não interessava à então Divisão de Medicamentos, à Anvisa, à Polícia Federal. A Resolução 1/2010, do Conad, refere então essa Convenção e então se seguiu uma discussão secundária: “ok, o tratado internacional permite o uso ritual, mas o Brasil não fez reservas quanto ao DMT”, e com isso se foge do debate central: o que é uma liberdade? Na Suprema Corte dos Estados Unidos e no Supremo Tribunal Federal no Brasil, entre outros, tem-se afirmado, em vários casos, que o tratado internacional deve ser interpretado em harmonia com as liberdades reconhecidas pela Constituição. Não o contrário. Não devemos interpretar a Constituição com base no tratado: é o contrário, sob pena de “a carroça puxar o boi”.
Sua pesquisa descreve e examina o conjunto das decisões proferidas pelo Confen e Conad. Que conclusões podemos extrair das deliberações?
Várias, e sob múltiplos aspectos. Na pesquisa enfatizei apenas o aspecto jurídico e alguns outros correlatos imediatamente. Mas caberia um trabalho autônomo. São várias decisões que vão de 1985, proferida pela Dimed, órgão integrante do Ministério da Saúde, até 2010, com a Resolução 1/2010 do Conad. O Confen, mais tarde substituído pelo Conad, é um órgão que mudou ao longo do tempo tanto na sua composição, gradativamente aumentou a representação da sociedade civil na sua composição, na sua localização topográfica ou institucional – ora integrava a Presidência da República, ora na Secretaria ora o Ministério da Justiça.
Mudanças que espelharam as mudanças no quadro político brasileiro?
Sim. Quando se examina suas decisões ao longo do tempo, verifica-se algumas constantes. Houve decisões originadas de relator e houve decisões originadas de grupos de trabalho integrados por profissionais de várias áreas. As decisões restritivas provieram de relatores individualizados, em geral, ligados à área médica, quando se enfatizava a razão médica, farmacológica, enquanto as decisões multidisciplinares reconheciam a liberdade, enfatizando o uso concreto e socialmente localizado da bebida, com argumentos não só farmacológicos, mas provenientes das ciências humanas – antropologia, política, sociologia, filosofia etc.
Ao longo de suas decisões o extinto Confen ou Conad não proibiram a ayahuasca.
Não e no máximo impôs, durante algum tempo, algumas restrições. A decisão de 1985, a primeira decisão governamental brasileira sobre o tema, foi proferida pela Dimed e se revestiu de várias falhas tanto jurídicas quanto técnicas, quando afirmou, por exemplo, que o DMT era presente no cipó, quando é encontrada na folha utilizada no preparo da bebida. Há inúmeros outros aspectos, mas quero destacar um para não me alongar. A análise das várias decisões do órgão é, em seu conjunto, um reconhecimento às entidades pioneiras e tradicionais que fazem uso de ayahuasca.
A primeira decisão conclusiva do Confen é de 1987?
Sim, mas em 1986 houve uma decisão provisória baseada em estudos de campo, com visitas às principais entidades. Esse contato permitiu aos pesquisadores constatar que os efeitos do DMT, abstratamente considerados, são diferentes dos efeitos da ayahuasca no uso ritual. Com base no que viram, pesquisaram, fotografaram, decidiram que o uso ritual devia ser liberado integralmente.
Mas os estudos detectaram, já naquela época, outro uso, digamos não tradicional, que se distanciava do modelo compreendido e aceito como uso ritual da ayahuasca.
Esse outro uso era uma espécie de desdobramento do uso tradicional, e incorporava outros elementos e, em especial, maconha. Na época, as entidades que faziam esse outro uso, comprometeram-se a interrompê-lo. Ocorre que esse outro uso, não-tradicional, continuou e expandiu-se ao abrigo genérico daquela permissão para o uso ritual tradicional. As decisões supervenientes do Confen/Conad são respostas a esse uso alternativo. Com o tempo aquele uso alternativo passou a ser confundido com o uso tradicional, e as decisões, embora visassem o uso alternativo, faziam uso de uma linguagem que confundia. Publicava-se uma decisão e dali algum tempo o Confen/Conad recebia várias denúncias, algumas graves, envolvendo comércio, adolescente viciada em maconha com a mãe pedindo providência para resgatar sua filha, mortes etc. Mas quando se examina as decisões, suas razões, seus considerandos, seu histórico, percebe-se que esses fatos posteriores não disseram respeito às entidades tradicionais. Curiosamente, quando se publicava na imprensa escândalos, quem veio a público, quem comparecia aos órgãos públicos foram as entidades tradicionais. A mídia, e por vezes até o poder público, não fazia nem faz essas distinções.
O ministro Gilmar Mendes participou da sua banca de exame, aprovando e recomendando a publicação da pesquisa. Como isso aconteceu?
O ministro Gilmar Mendes é mais conhecido como um integrante do Supremo Tribunal Federal, e autor de várias contribuições jurisprudenciais importantes. Mas o ministro é, de longa data, professor universitário e um pesquisador com enorme produção teórica e acadêmica, um dos mais influentes constitucionalistas brasileiros. Foi meu professor no mestrado. É autor de várias obras sobre interpretação constitucional, dogmática constitucional e sobre direitos fundamentais, algumas das quais indispensáveis para quem quer conhecer o direito constitucional brasileiro. Nessa condição de acadêmico, o professor que foi meu orientador, Álvaro Ciarlini, enviou para ele a pesquisa, e ele considerou a possibilidade de participar da banca, pelo ineditismo do assunto. Para mim, foi uma enorme honra e uma grande oportunidade, como um acreano, nascido na zoa rural comendo pão de milho com leite de castanha, defender uma dissertação sobre teoria do direito através de um tema tipicamente acreano, perante uma banca formada por pessoas tão eruditas. Não sonhava tanto.
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